UMA
CABEÇA HISTÓRICA
Era pelos fins do século XVIII, em mil
setecentos e oitenta e tantos.
Nesse tempo, esta capital de Minas, que então com
justa razão tinha o nome de Vila Rica, era
opulenta e populosa, como bem poucas cidades se
podiam contar no Brasil.
Os
governadores e fidalgos dessa época rodavam em
ricas carruagens tiradas por possantes mulas por
essas ladeiras, onde hoje só rincham pesados
carros puxados a bois.
Havia quase sempre curros ou touradas, e
cavalhadas magníficas; procissões de esplendor e
riquezas deslumbrantes; espetáculos teatrais em
que a arte suntuosamente protegida pelos
governadores era cultivada com esmero no gosto da
época; uma literatura própria, se bem que um tanto
abastardada pela imitação do classicismo lusitano,
literatura de que foram dignos representantes
nomes até hoje célebres.
Gonzaga, Alvarenga Peixoto e Cláudio Manuel da
Costa são glórias que nunca mais se eclipsarão.
Havia regozijos e festas de toda a espécie, muito
luxo, comércio interior ativo e o povo nadava em
abundância.
E
tudo isso por quê?
Porque naquela época o ouro por essas montanhas
como que brotava à flor da terra.
O
ouro era tão abundante que os próprios pretos
cativos com as migalhas que escapavam das
lavras de seus senhores edificaram mais de um
templo magnífico, que até hoje aí estão, e as
pretas, quando iam às suas festas costumeiras,
polvilhavam a carapinha com areia de ouro.
Mas
em contraposição a tudo isso, o povo gemia debaixo
da mas vil, da mais infamante escravidão.
O
bem-estar material era grande; mas a degradação
moral era profunda.
Ali
sobre aquele morro se erguia o vulto sinistro e
ameaçador da forca, que nunca se desarmava, e em
que a um simples aceno da tirania, apenas com uma
aparente forma de processo, se imolava tanto o
criminoso como o inocente

Acolá, no meio daquela praça pública, em face de
um templo cristão — como um sarcasmo vivo — até
bem pouco se achava alçado o pelourinho, ainda
mais infamante, em que o cidadão era azorragado
publicamente, como o mais vil escravo.
Os
capitães-mores também de sua parte castigavam
arbitrariamente com açoutes, com tronco e até com
palmatória as mais leves faltas de seus
governados.
O
ouro extraído das minas pelo braço do povo era na
sua maior parte destinado a alimentar o luxo e a
cobiça de seus opressores.
Minas, bem como o Brasil inteiro, era bem como uma
vasta fazenda explorada em proveito da metrópole.
O
povo era uma turma de escravos, que trabalhavam
debaixo do azorrague de seus feitores — os
governadores, capitães-mores guarda-mores etc.
A
fazenda prosperava; mas os escravos indóceis
começaram a se enfadar de arroteá-la só para o
benefício de seus senhores.
E
nessa época de riqueza e opulência, de servilismo
e degradação social, no meio da praça principal
desta cidade se via uma cabeça humana dessecada,
cravada sobre um alto poste.
Este
poste e esta cabeça eram noite e dia guardados por
uma sentinela.
E à
noite uma lanterna se acendia para aluminar o
lúgubre espetáculo.
Havia dous ou três anos que este sinistro padrão
da mais brutal e feroz tirania ali hasteado.
E
por que razão esse cuidado em conservar ali tão
guardado, tão vigiado, aquele triste e miserando
resto de uma vítima há tanto tempo sacrificada?...

Para
que aquela sentinela ali postada constantemente
dia e noite?...
Temiam acaso que aquele crânio oco e ressequido
ode há tanto tempo se extinguira a vida e o
pensamento, de novo se reanimasse, e reunindo-se
ao tronco esquartejado e esparso, desse outra vez
o sinal da revolta ao povo oprimido?...
Ou
receavam que esse crânio, hasteado na ponta do
estandarte da emancipação, fosse o sinal certo da
queda dos tiranos e do triunfo da liberdade, como
esse célebre tambor que os soldados húngaros
fizeram da pele de seu bravo chefe Ziska, morto no
campo de batalha, tambor que quando rufava à
frente deles era seguro prenúncio da vitória?
Pobre Tiradentes!... ainda que não fosse tão nobre
e santa a causa por que te imolaste, a morte
afrontosa que sofreste, e a crueldade, direi
asquerosa, com que profanaram teus miserandos
restos, eram motivos bastantes para abençoarmos
tua memória e execrarmos a de teus algozes.
Era
uma noite tenebrosa, horrenda, como essa que vai
aí correndo. Impetuosa ventania, zunindo pelos
tetos da antiga e opulenta Vila Rica submersa no
sono e no silêncio, impelia pelos ares camadas de
espessa e frigidíssima neblina, e fazendo oscilar
sobre seu poste a caveira do mártir da liberdade
com sinistro estrépito, agitava-lhe os compridos
cabelos castanhos ainda aderentes ao crânio.

Parecia que aquela cabeça heróica, bafejada pelo
sopro da liberdade que rugia das montanhas, em seu
fúnebre oscilar, ameaçava ainda os tiranos, e lhes
predizia a próxima ruína.
O
pálido clarão da lanterna, que balouçava ao vento,
ondulava lúgubre sobre a ossada branquicenta,
desenhando ao vivo as cavidades negras dos olhos e
a dentadura amarelada.
O
pobre sentinela, talvez considerando que estava de
guarda a um crânio ressequido que a ninguém podia
fazer mal, e que longe de excitar a cobiça, só
poderia inspirar horror, o sentinela sentado no
chão, recostado sobre uma pedra, e com a arma
sobre os joelhos, deixava-se furtar do sono.
Um
vulto todo rebuçado surge por entre as trevas, e
se aproxima cautelosamente do tremendo poste.
Com
uma comprida vara que trazia, faz saltar do poste
a caveira, apanha-a rapidamente e de novo
desaparece com o favor da treva e do nevoeiro.
Tudo
isso foi feito com tal presteza, que quando o
guarda, despertado pelo som rouco da caveira ao
cair, deu fé do ocorrido, já era tarde. Viu apenas
uma sombra engolfar-se e desaparecer através do
nevoeiro.
Conheceis essa comprida rua, que na extremidade
ocidental desta cidade se estende isolada por uma
encosta acima, como a cauda de um lagarto.
Chama-se a rua das Cabeças.
A
origem desse nome sinistro vem de que aí se
fincavam na ponta de estacas as cabeças dos
míseros enforcados pelas esquinas dos becos.
—
Para servir de exemplo e escarmento aos povos —
diziam os tiranos.
Mas
os fatos vieram depois comprovar-lhes que erravam
procedendo assim.
No
alto dessa rua, não há muitos anos, existia uma
velho de vida misteriosa e retraída, a quem o povo
olhava com respeito e curiosidade.

Vivendo sozinho em uma casa quase arruinada,
comunicando-se raras vezes com seus semelhantes e
só em caso de necessidade, parecia um anacoreta ou
um homem possuído de singular monomania.
Entretanto os curiosos, que nunca faltam nas
cidades, espiolhando um dia pelas fendas das
arruinadas paredes da morada do velho, devassaram
singularíssimo segredo de sua vida íntima.
Viram-no abrir com ar de religioso respeito a
portinhola de um nicho ou de um armário praticado
na parede, tirar dele um crânio humano branco e
mirrado, depô-lo silenciosamente sobre uma mesa
colocada em frente a um oratório, e ajoelhando-se
depois com os braços encostados sobre a mesa,
assim ficar por longo tempo, em atitude de
profunda meditação ou no êxtase de uma oração.
Mas
esta descoberta, como bem se pode ver, em nada
veio dissipar o mistério que pairava sobre a vida
do velho. Pelo contrário vinha ainda rodeá-la de
mais um sinistro prestígio, e em vez de acalmar a
curiosidade do povo, concorreu para mais
excitá-la.
Que
crânio seria esse, que o velho guardava, e parecia
venerar com religioso acatamento?
Seria a relíquia de algum ente amado?
Seria o velho algum assassino, que em expiação de
seu crime queria ter sempre diante de si o crânio
da sua vítima para lacerar continuamente a
consciência com o cilício do remorso?...
Seria algum cenobita imitador de São Jerônimo, que
tinha sempre diante de seus olhos a caveira humana
a fim de conservar contínuo presente ao espírito o
nada da existência?
A
maior parte do povo porém ficou tendo o pobre
velho por um grande feiticeiro, e por isso
tinha-lhe medo e o respeitava.

Assim pois descobrindo aquele segredo da vida do
velho ainda a tornaram mais misteriosa e quase
sinistra.
Pouco tempo depois morreu o velho, foi pobremente
enterrado no adro relvado da capela do Senhor Bom
Jesus, sita na mesma rua, e sua casa tombando em
ruínas, ficou abandonada, pois se já em vida de
seu dono era objeto de terror para o povo, muito
mais o ficou sendo depois de seus falecimento.
Não
foi senão alguns anos depois, que se veio no
conhecimento, de que o velho misterioso não era
outro senão o ousado roubador da cabeça do
Tiradentes, e que a caveira, que com tão religioso
cuidado guardava e venerava, era a daquele ilustre
e desditoso mártir do primeiro movimento
emancipador.
Contou depois isto alguém que era o único
depositário do segredo do velho, e que por
ignorância ou indiferença ligava pouca importância
a um fato tão curioso.
Que
é feito porém desse crânio histórico, que tão
generosos pensamentos abrigou outrora em seu seio?
Quereria seu possuidor, em sua fanática veneração
pela liberdade e por aquela relíquia do seu
principal mártir, que ela fosse com ele enterrada,
e seria cumprida a sua última vontade?
Ou
ficaria essa relíquia — digna de ser encarcerada
em uma urna de ouro — calcada debaixo dos entulhos
das paredes esboroadas da habitação do velho?...
Ninguém o sabe.
Os
fatos que acabo de narrar, posto que pouco
conhecidos, são tradicionais.
Perguntem aos velhos, e mesmo a alguns moços mais
curiosos, das cousas antigas da nossa terra, e se
convencerão de que esta história não é de minha
lavra.
Ouro
Preto, maio de 1867.

TIRADENTES

O
tropeiro Joaquim José da Silva Xavier meteu-se
numa enrascada. Carregando suas mercadorias por
uma estrada poeirenta de Minas Gerais, deparou com
o espancamento de um escravo e saiu em seu
socorro. Levado a julgamento pela atitude, foi
condenado a arcar com as custas do processo e
pagar uma pesada multa. O negro era propriedade do
agressor, e Joaquim José não tinha o direito de
intervir, disseram os juízes. Para salvar a dívida
com a Justiça, viu-se forçado a vender os burricos
e as mercadorias. Era tido o que tinha.
Em
1775, aos 29 anos, ele não dispõe de quaisquer
recursos para continuar negociando. Tampouco
pretende viver como dentista, ofício ao qual deve
a alcunha de Tiradendes. Sem idéia melhor,
alista-se ao regimento da cavalaria de Vila Rica.
Admitido como alferes, é nomeado comandante da
patrulha que fiscaliza as estradas entre Minas e
Rio. No caminho por onde vê passar o ouro que vai
enriquecer a coroa portuguesa, encontra uma
população oprimida por altos impostos e
arbitrariedades. Em pouco tempo, é visto em
tavernas, quartéis e pousos de beira de estrada
discursando contra o governo colonial.
Essa
rebeldia ganha contornos mais nítidos qiando o
alferes conhece José Álvares Maciel, que chegara
da Europa trazendo maravilhosas idéias de
liberdade. A independência da Brasil é um sonho
possível, concordam. Em 1788, a dupla organiza em
Vila Rica a primeira reunião de conspiradores e
apresenta o plano de expulsar os portugueses.
Rapidamente, os sediciosos são contatos às
dezenas. Entusiamados, já se imaginam líderes de
uma jovem república. Resolvem transferir a capital
para São João del Rei, discutem a libertação de
escravos, redigem uma constituição. Tiradentes
propõe que a bandeira da nova nação seja branca,
com um triângulo vermelho simbolizando a
Santíssima Trindade. Esses belos sonhos são
frustrados por uma traição. Às vésperas do
levante, um dos conspiradores, Joaquim Silvério
dos Reis, troca a cabeça dos companheiros por
perdão de suas dívidas. Em maio de 1789, 34
rebeldes vão para o calabouço.
Três
anos mais tarde, em 21 de abril de 1792,
Tiradentes veste o camisolão branco dos condenados
e conduzido ao Largo da Lampadosa, no Rio de
Janeiro. Nos interrogatórios assumira toda a
responsabilidade pela rebelião. Acaba sendo o
único punido com a morte. Do patíbulo onde será
enforcado, ouve o rufar dos tambores e o murmúrio
da multidão. Crispa os dedos ao sentir o carrasco
trepar em seu ombros e cavagá-lo. Em instantes,
está morto.
Mas
a morte não é suficiente para aplacar a fúria dos
algozes. A cabeça do mártir é espetada num poste
em Vila Rica e seu corpo esquartejado, espalhado
pelas vilas vizinhas. A sanha incluiu o confisco
de seus bens. O patrimônio da coroa é enriquecido
por um par de esporas de prata, duas fivelas, duas
navalhas, um espelho, uma bolsa com forros de
dentista, uma bússola, um canivete, uma cixinha de
chifre e um relógio marca Elliot. Era tudo o que
Tiradentes tinha.
Somente no período republicano, é que o dia 21 de
abril se tornou feriado nacional, e em 1965,
Tiradentes foi proclamado patrono cívico da nação
brasileira.

Texto pesquisado e desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO
Bibliografia:
Bernardo Guimarães: História e Tradição da
Província de Minas Gerais. Editora Garnier


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