NEGRINHO DO PASTOREIO

Esta é a mais popular e a única lenda genuinamente gaúcha, mas
por ser tão bela e comovente, acabou sendo "exportada, legalmente, ou
ilegalmente", como afirma o folclorista e professor Antonio Augusto Fagundes.

A LENDA

Era o tempo da escravidão e um menino negrinho,
pretinho que nem carvão, humilde e raquítico era escravo de
um fazendeiro muito rico, mas por demais avarento. Se alguém necessitasse de um
favor, não se podia contar com este homem. Não dava um níquel a ninguém e seu
coração era a morada de uma pedra, não nutria qualquer sentimento por ninguém, a
não ser por seu filho, um menino tão malvado quanto seu pai, pois afinal, a
fruta nunca cai muito longe da árvore. Este dois eram extremamente perversos e
maltratavam o menino-escravo desde do raiar do dia, sem lhe dar trégua. Este
jovenzinho não tinha nome, porque ninguém se deu sequer o trabalho de pensar
algum para ele, assim respondia pelo apelido de "negrinho".
Seus
afazeres não eram condizentes com seu porte físico, não parava o dia inteiro. O
Sol nascia e lá já estava ele ocupado com seus afazeres e mesmo ao se por, ainda
se encontrava o negrinho trabalhando. Sua principal ocupação era pastorear.
Depois de encerrar seu laborioso dia, juntava os trapos que lhe serviam de cama
e recebia um mísero prato de comida, que não eram suficientes para repor as
energias perdidas pelo sacrificado trabalho.
Mesmo sendo tão útil, considerado mestre
do laço e o melhor peão-cavaleiro de toda a região, o menino era inúmeras
vezes castigado sem piedade.

Certa vez, o estanceiro atou uma carreira
com um vizinho que gabava-se de possuir um cavalo mais veloz que seu baio. Foi
marcada a data da corrida e o negrinho ficou encarregado de treinar e montar o
famoso baio, pois sabia seu patrão, não haver ninguém mais capaz que ele para
tal tarefa.
Chegando o grande dia, todos os habitantes
da cidade, vestindo suas roupas domingueiras, se alojaram na cancha da carreira.
Palpites discutidos, apostas feitas, inicia-se a corrida.
Os dois cavalos saem emparelhados. Negrinho
começa a suar frio. pois sabe o que lhe espera se não ganhar. Mas, aos poucos
toma a dianteira e quase não há dúvida de que seria vencedor. Mas, eis que o
inesperado acontece, algo assusta o cavalo, que para, empina e quase derruba
Negrinho. Foi tempo suficiente para que seu adversário o ultrapasse e ganhe a
corrida.
E agora? O outro cavalo venceu. Negrinho
tremia feito "vara verde" ao ver a expressão de ódio nos olhos de
seu patrão. Mas o fazendeiro, sem saída, deve cobrir as apostas e põe a mão
no lugar que lhe mais caro: o bolso.
Ao
retornarem à fazenda, o Negrinho tem pressa para chegar a estrebaria.
-
Aonde pensa que vai? pergunta-lhe o patrão.
-
Guardar o cavalo sinhô! Balbuciou bem baixinho.
-
Nada feito! Você deverá passar trinta dias e trinta noites com ele no pasto e
cuidará também de mais 30 cavalos. Será seu castigo pelo meu prejuízo. Mas,
ainda tem mais, passe aqui que vou lhe aplicar o devido corretivo.
O
homem apanhou seu chicote e foi em direção ao menino:
-
Trinta quadras tinha a cancha da corrida, trinta chibatadas vais levar no lombo
e depois trata de pastorear a minha tropilha.
Lá
vai o pequeno escravo, doído até a alma levando o baio e os outros cavalos à
caminho do pastoreio. Passou dia, passou noite, choveu, ventou e o sol
torrou-lhe as feridas do corpo e do coração. Nem tinha mais lágrima para
chorar e então resolveu rezar para a Nossa Senhora, pois como não lhe foi dado
nome, dizia-se afilhado da Virgem. E, foi a "santa solução", pois
Negrinho aquietou-se e então cansado de carregar sua cruz tão pesada,
adormeceu.
As
estrelas subiram aos céus e a lua já tinha andado metade de seu caminho,
quando algumas corujas curiosas resolveram chegar mais perto, pairando no ar
para observar o menino. O farfalhar de suas asas assustou o baio, que soltou-se
e fugiu, sendo acompanhado pelos outros cavalos. Negrinho acordou assustado, mas
não podia fazer mais nada, pois ainda era noite e a cerração como um lençol
branco cobria tudo. E, assim, o negrinho-escravo sentou-se e chorou...
O
filho do fazendeiro, que andava pelas bandas, presenciou tudo e apressou-se em
contar a novidade ao seu pai. O homem mandou dois escravos buscá-lo.
O
menino até tentou explicar o acontecido para o seu senhor, mas de nada
adiantou. Foi amarrado no tronco e novamente é açoitado pelo patrão, que
depois ordenou que ele fosse buscar os cavalos. Ai dele que não os encontrasse!
Assim,
Negrinho teve que retornar ao local do pastoreio e para ficar mais fácil sua
procura, acendeu um toco de vela. A cada pingo dela, deitado sobre o chão, uma
luz brilhante nascia em seu lugar, até que todo lugar ficou tão claro quanto o
dia e lhe foi permitido, desta forma, achar a tropilha. Amarrou o baio
e
gemendo de dor, jogou-se ao solo desfalecido.
Danado
como ele só e, não satisfeito com já fizera ao escravo, o filho do
fazendeiro, aproveitou a oportunidade de praticar mais uma maldade dispersa os cavalos. Feito isso, correu novamente até seu pai e
contou-lhe que Negrinho havia encontrado os cavalos e os deixara fugir de
propósito. A história se repete e dois escravos vão buscá-lo, só que desta
vez seu patrão está decidido em dar cabo dele. Amarrou-o pelos pulsos e
surrou-o como nunca. O chicote subia e descia, dilacerando a carne e
picoteando-a como guisado. Negrinho não agüentou tanta dor e desmaiou. Achando
que o havia matado, seu senhor não sabia que destino dar ao corpo. Enterrá-lo
lhe daria muito trabalho e avistando um enorme formigueiro jogou-o lá. As
formigas acabariam com ele em pouco tempo, pensou.

No
dia seguinte, o cruel fazendeiro, curioso para ver de que jeito estaria o corpo
do menino, dirigiu-se até o formigueiro. Qual sua surpresa, quando o viu em
pé, sorrindo e rodeado pelos cavalos e o baio perdido. O Negrinho montou-o e
partiu a galope, acompanhado pelos trinta cavalos.

O
milagre tomou o rumo dos ventos e alcançou o povoado que alegrou-se com a
notícia. Desde aquele dia, muitos foram os relatos de quem viu o Negrinho
passeando pelos pampas, montado em seu baio e sumindo em seguida por entre
nuvens douradas. Ele anda sempre a procura das coisas perdidas e quem necessitar
de seu ajutório, é só acender uma vela entre as ramas de uma árvore e dizer:
Foi
aqui que eu perdi
Mas
Negrinho vai me ajudar
Se
ele não achar
Ninguém
mais conseguirá!

Esta
é a mais linda e popular lenda fraternal gaúcha. Ela representa um grito de
repúdio aos maus-tratos com o ser humano. Reflete a consciência de um povo
(gaúchos) que deliberadamente condenou a agressão e a brutalidade da
escravidão. É uma lenda sem dono, sem cara, sem raça é a lenda de todos
nós, que lutamos dia-a-dia nesta terra de excluídos.
O
Negrinho do Pastoreio é a formatação de um arquétipo do inconsciente
coletivo e podemos vê-lo como uma manifestação de uma consciência coletiva
repleta de ideologias que são transmitidas pela cultura e linguagem que nós
utilizamos quando estamos sujeitos a algo.
A
escravidão ainda persiste, embora incógnita e camuflada, mostra sua
terrível face nas sub-habitações circunvizinhas às metrópoles. Esta
questão social, tem a cada dia afastado a classe média de uma consciência do
real problema e que por medo ou omissão, mantêm-se afastada e enclausurada em
suas fortalezas gradeadas.
A
lenda do Negrinho do Pastoreio possui versões no Uruguai e na Argentina,
lugares onde praticamente a escravidão inexistiu, portanto, aqui
configura-se uma verdadeira "exportação" da lenda gaúcha. A sua versão mais
antiga é a de propriedade de Apolinário Porto Alegre, "O Crioulo do
Pastoreio" de 1875, quando ainda existia a escravidão no país. João
Simões Lopes Neto, publicou em 1913 as "Lendas do Sul", onde
concretizou algumas alterações, introduzindo o baio, as corujas e a Nossa
Senhora.
No
Rio Grande do Sul, o Negrinho é símbolo da Caixa Econômica Estadual. É
encontrada outra homenagem à ele na sede do Governo do Estado, no Salão Nobre
que leva o seu nome. Lá encontramos afrescos do famoso pintor Aldo Locatelli
que reconta sua história na versão de Lopes Neto.
Inúmeros
poetas e trovadores, já cantaram e escreveram sobre esta lenda, sendo que o
mais famoso dos poemas pertence à Barbosa Lessa (abaixo)

Negrinho
do Pastoreio
l. c. Barbosa Lessa
"Negrinho do Pastoreio
Acendo essa vela pra ti
E peço que me devolvas
A querência que eu perdi
Negrinho do Pastoreio
Traz a mim o meu rincão
Eu te acendo essa velinha
Nela está o meu coração
Quero rever o meu pago
Coloreado de pitanga
Quero ver a gauchinha
A brincar na água da sanga
E a trotear pelas coxilhas
Respirando a liberdade
Que eu perdi naquele dia
Que me embretei na cidade".

Texto pesquisado e desenvolvido por
Rosane Volpatto
Bibliografia
consultada:
Lendas
do Sul - J. Simões Lopes Neto
Mitos
e Lendas do Rio Grande do Sul - Antonio Augusto Fagundes Lendas Brasileiras -
Câmara Cascudo




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