URUTAU, o pássaro feérico

O urutau é uma ave noturna, "nictibius gradis", que em noites de luar desliza nas alturas, entretendo-se em perseguir e devorar mariposas e besouros.

Ele habita a zona norte e nordeste da Argentina, as matas do Paraguai, o norte do Uruguai e o Brasil, onde toma vários nomes: Jurutaui na região amazônica; ibijouguaçú entre os tupis e Mãe da Lua entre os mineiros. Suas designações correspondem a diversas zonas lingüísticas: à dos tupis e guaranis e à do idioma quichua.

Na zona guaranítica o pássaro chamava-se urutau. Existem duas etimologias para esta palavra, a primeira vem do tupi "uirataub" e quer dizer pássaro fantasma. A outra, de "Juru" (boca) e "tahy" (escancarada). De acordo com este significado, este pássaro deu origem a dois contos bem procedentes, onde a boca aberta do pássaro era comparada a vulva da mulher, versão também estendida entre os índios Uapiziana, da Guiana. Na zona de idioma quichua, o urutau tem o nome de "cacuy".

O urutau é uma ave rara, que dorme durante o dia escondida em uma árvore. Procura uma extremidade e aí se estende, se adaptando de tal maneira que toma o aspecto de prolongamento do galho. Possui a cabeça chata, olhos grandes e vivos, a boca rasgada de tal maneira que seus ângulos alcançam a região posterior dos olhos. Sua cor é parda acanelada, apresentando listras transversais escuras. Isso lhe permite adaptar-se a cor do galho onde pousa. Esse seu disfarce associado a sua perfeita imobilidade o protegem da vista dos caçadores.

Esse pássaro não constrói ninhos, no período após o acasalamento, deposita seus ovos em uma cavidade natural de seu poleiro noturno.

Seu grito é um "hu-hu-hu", que se faz ouvir após o anoitecer, procurando então, a solidão mais espessa dos bosques, de onde  faz se desprender sua voz de profunda lamentação. Para alguns, parece semelhante ao clamoroso lamento de uma mulher que termina com amortecidos "ais".  Seu canto provoca, portanto, espanto e piedade aos que possam ouvi-lo e é também fantasmagórico.

A par da voz queixosa e plangente, uma quase invisibilidade, confere-lhe o caráter de um ente misterioso. Muitos não o tomam por uma verdadeira ave, senão por um ser fantástico, inacessível a mão e o olhos humanos. Já outros, porém, não duvidam de sua existência, mas consideram-no como um ente enigmático e superior, dotado de muitas qualidades fora das leis naturais, entre elas, a de preservar das seduções a pureza das moças. Conta-se que antigamente, matavam para isso uma dessas aves e tiravam-lhe a pele que era seca ao sol. Servia para assentarem-se nela as filhas, nos três primeiros dias, do início da puberdade. No término deste tempo, a jovem saía "curada", isto é, invulnerável à tentação das paixões desonestas que pudessem atrair. 

As qualidades sobrenaturais deste pássaro se destacam nas crendices populares. As penas e a pele do urutau são  milagrosas.

                             

Apesar de seu grito de lamentação, o urutau não era tido entre os indígenas como uma ave de mau agouro. Conta-se que os tupinambás consideravam o canto desta ave como saudações de defuntos parentes e amigos e para excitá-los à guerra contra os inimigos. Afirmam que um, foi pousar em uma aldeia dos Tupinambás, quando ouviu um lastimosos gritar, vendo que os pobres índios estavam tão atentos a ouvir o urutau e sabendo também a razão, queria mostrar-lhes a loucura do proceder, mas um velho lhe respondeu:

 

- "Cala-te e não me impeças de ouvir as boas notícias que nossos avós agora nos ensinam, pois quando ouvimos esta ave, nós alegramo-nos e cobramos uma nova força".

 

 

LENDAS DA ORIGEM DO MITO

 

Várias são as lendas de seu nascimento. 

Uma delas nos relata que à beira das águas do Uruguai, ondeadas pelos balsâmicos ares da região missioneira, foi berço de Nheambiú, terna jovem guarani, filha única de um poderoso morubixaba , que tinha castigado os ferozes goitacazes. Preso dele foi Quimbae, guapo e generoso guerreiro, que se apaixonou por Nheambiú. Porém os pais opuseram-se constantemente à união matrimonial dos dois seres que já não eram senão uma alma.

Um dia, quando menos esperavam, desapareceu Nheambiú da casa de seus pais. Os alarmados tuxavas acudiram à morada de Quimbae, suspeitando que com ela tivesse fugido. Quimbae, porém, estava em casa e surpreendido manifestou sinceridade e estranheza que lhe causou a notícia, julgando impossível que uma jovem tão meiga e discreta tivesse fugido da casa paterna.

- "Sonhei, disse ele, que uma mulher fera, que representava a desgraça, tinha levado Nheambiú aos montes, onde mora entre os quadrúpedes e as aves, que não a ofendem, nem fogem dela".

 

-"Aos montes! Aos montes!" clamava o aflito pai. "Aos montes para buscar minha filha, que levou caipora".

                             

O barulho que faziam os "ipecuas" (pica-paus), pássaros que alvorotam muito ao chegar gente, excitou a curiosidade da fugitiva. Saindo do espesso mato, achou-se logo rodeada dos solícitos vassalos de seu pai, que carinhosos tentam por todos os meios, persuadi-la a regressar aos lares de sua família. Mas o excesso de dor, sem esperança e sem consolo, afogava no peito de Nheambiú, que nem se deu o trabalho de articular alguma palavra. Tinha perdido inteiramente a sensibilidade. Insensível e muda, virou-lhes as costas e internou-se de novo no denso mato.

 

As amigas de Nheambiú lhe eram muito afeiçoadas, pois ela fazia-se querida por elas em virtude da sua bondade e indulgência. Vendo frustrada a missão dos emissários que tinham voltado, lamentando o acontecido, determinaram unânimes ir em busca da fugitiva. Mas estas, também retornaram consternadas. Suas perseguições não foram mais eficazes do que as que a precederam. Nheambiú permaneceu perante elas, muda e fria como uma estátua de mármore, sem dar sinal de sentimento.

 

Consultaram então o adivinho. Este preparou-se para fazer o possível, tomando diversas cabaças de mate e chicha, murmurando algumas palavras entre os dentes e depois de fazer algumas viagens, caiu como que morto. Em seguida levantou-se e foi-se novamente, mas voltou dizendo que abandonassem esperanças quanto a pretensão de trazer a moça de volta para casa.

 

Mas, seus pais, preferiam morrer a abandoná-la. Então fez Aguara outro e último esforço. Entendia que para tirá-la do seu letargo era necessário uma inteira revolução moral que fizesse reviver em sua alma o fogo da sensibilidade que estava como extinta, convertendo-se num estado de absoluta indiferença a tudo. "Faz que ela sinta", disseram ao feiticeiro. Obedecendo chegou-se pausadamente e disse em seu ouvido:

 

- "Quimbae faleceu".

 

Uma faísca elétrica  rápida e eficaz inflamou seu corpo. A moça exalando repetidos "ais", desaparece instantaneamente aos assombrados olhos dos que a rodeavam e que, penetrados de dor, convertem-se em salgueiros. Nheambiú, convertida subitamente em uma ave que chamam urutau escolhe o mais velho e desfolhado galho daqueles salgueiros para chorar eternamente sua desgraça.

 

Já outra lenda, nos fala de Jouma, cacique dos Mocovies (guaranis), surpreende a Marramac, nos braços de um estrangeiro e o mata a flechadas. Perde posteriormente a razão e transforma-se no urutau. Segundo uma outra versão, o Urutau é um menino, órfão de pai e mãe, que passa a vida muito triste, chorando a perda dos progenitores. Fita o Sol e a Lua e, quando os astros desaparecem, não faz mais do que lamentar-se. Contava uma lenda também, que o urutau foi uma pessoa que não quis visitar o Menino Jesus, e por isso hoje chora arrependido de novembro a janeiro.

Por sua existência misteriosa, o urutau além das lendas era objeto de práticas supersticiosas. Os guaranis acreditavam que partindo-se as asas e as pernas do pássaro durante a noite, no dia seguinte ele amanhecia perfeito. Segundo à algumas crendices indígenas, esta ave noturna se revestia de atribuições que são inerentes ao Cupido. As penas do urutau eram eficazes talismãs de amor. Assim sendo, aquele que conduzir uma de suas penas, atrai a simpatia e o desejo do outro sexo; que se consegue qualquer pretensão com a escrita com uma de suas penas. Acreditava-se ainda, que suas penas e cinzas eram remédios contra doenças. 

Uma das crenças mais curiosas no poder sobrenatural do urutau é a que faz referências a sua posição face ao ciclo solar. Quando o sol nasce o pássaro volta sua cabeça para ele e acompanha o seu curso. Quando o astro caminha para o poente, começa então a entoar o canto dolorido "u - ru - tau".

Couto de Magalhães elevou o urutau à categoria dos deuses, reservando-lhe o segundo lugar da sua teogonia tupi. Todas essas considerações, entretanto, nos leva a classificar o urutau como um pássaro feérico, que existe por direito próprio.

 

O urutau pertence à Ordem dos Caprimulgiformes, família dos Nyctibiidae. No Brasil, ocorrem as seguintes espécies: Nyctibius grandis (Urutau, Mãe da Lua Gigante); Nyctibius griseus (Urutau) e Nyctibius aethereus (Mãe da Lua Parda). 

 

Texto de Rosane Volpatto