Existe uma importante incidência da cultura
negra na literatura rio-grandense, e este tema provém, em última hipótese, da
abundância do material folclórico que as populações africanas herdaram de seus
antepassados.
No tempo da escravidão, no Rio Grande do Sul,
era comum a fuga de escravos, e os que fugiam, arriscando a própria vida,
ficaram conhecidos como “caiambolas”.
Conta-se, que durante este período, em uma
grande fazenda nos Banhados, município de Santa Maria, começaram misteriosamente
a desaparecer coisas. Entretanto, sempre ficava um presente em seu lugar. Algo
bem rústico ou artesanal era deixado como troca como: balaios, esteiras, potes
de barro, enfeites de pena, etc. Nestas circunstâncias, o que realmente ocorria
era uma troca e não um roubo. Esta diferenciada atitude, despertou a curiosidade
do povo.
-“É incrível!”, diziam todos.
O imaginário popular passou então a fantasiar
em torno do caso. E tal mistério logo foi associado com o demônio. A princípio,
o povo não tocava nos objetos, temendo serem artes do diabo ou por achar que
estivessem enfeitiçados. Mas, como o passar do tempo, verificando-se que as
esteiras e os balaios não faziam mal a ninguém, muito pelo contrário, eram muito
úteis, a prevenção desapareceu, chegando ao ponto de algumas pessoas deixarem à
noite, em frente de suas casas, facas, tesouras, cordas, na esperança de que
fossem trocadas por uma esteira ou balaio. Durante muitos anos estas transações
ocorreram com muita naturalidade, pois já haviam perdido o cunho
sensacionalista.
Em certa ocasião, andando a melar escravos na
mata virgem, que no centro de uma floresta, próxima de Banhados, elevava-se
espiralando uma tênue nuvem de fumaça branca. Curioso e procurando desvendar o
enigma, um preto galgou a copa de uma árvore gigantesca e lançando seu olhar em
direção de onde saía a tal fumaça, descobriu uma clareira em meio a mata
espessa, em a qual, um negro se entretinha a preparar uma carne nas brasas.
Descendo, comunicou aos companheiros a
descoberta. Foi então que resolveram capturar o negro, que logicamente,
acreditavam fugido. Armados até os dentes, fizeram o cerco ao desconhecido e,
avançando cautelosamente, caíram sobre ele, subjugando-o, apesar da resistência
oposta pela vítima.
Era um negro de proporções avantajadas e de
aspecto medonho, em razão do cabelo emaranhado e pêlo irsuto que lhe cobria o
rosto, onde os olhos cintilavam como brasas. Cobria-lhe o peito e as costas uma
couraça de pele de quati costurada com cipó e, presa aos quadris, uma espécie de
tanga de pele do mesmo animal.
Levado até a fazenda, foi chamado de Pai Quati
em razão de apresentar tão estranha indumentária. Entretanto, nada mais foi
possível saber dele, pois não compreendia a língua portuguesa.
Foi então chamados alguns escravos que haviam
nascido na África, para que pudessem compreender o que Pai Quati tentava dizer. Fianalmente o contato foi estabelecido e descobriu-se que o estranho era de
Moçambique. Explicou-se deste modo, o mistério das esteiras e dos balaios.
O caso era o seguinte:
Tendo o negro chegado ao Rio Pardo, em uma leva
que seria vendida em um leilão, conseguiu ele evadir-se e, atravessando sertões,
rios, precipícios e banhados, lutando com feras e as intempéries, alcançou a
salvo Banhados, onde, dentro da mata virgem, armou sua choupana e vivia recluso.
Como era um homem de bos índole e muito
honesto, não queria se apropriar dos utensílios de que precisava, nem da carne
que comia quando não conseguia caça. Assim, perito em manufatura de cestos e
esteiras, meio de vida que o sustentava em sua terra, trabalhava, durante o dia,
arduamente na fabricação de tais objetos, para, na calada do noite,
misteriosamente, trocá-los por tudo aquilo que achasse à mão e que pudesse ser
útil.
Não demorou muito para que a comovente história
do Pai Quati, correndo de boca em boca, enchesse a redondeza. Logo, todos
passaram a admirá-lo. Uma auréola glorificadora circundou sua fonte negra,
compensando-lhe os dias de amargura. Como era um homem livre, foi contratado
para trabalhar como peão em uma fazenda. Entretanto, quando a saudade apertava,
abandonava tudo e voltava a viver no mato, caçando quatis.
Morreu de velho, passando quase toda sua
existência solitário, mas acalentado pelo seio da floresta, conforme escreveu
João Belém.
O negro marcou e marca presença em nossa
história, religião, geografia, língua, artes, esporte e política. Braços bravios
de ancestrais negros lutaram em guerras que não eram suas, saindo da
clandestinidade para tornarem-se uma presença consciente e símbolo de orgulho e
esperança de sua raça. Sua contribuição para construção de um Rio Grande do Sul
forte e livre deve ser sempre relembrada e agradecida por todos nós.
Texto pesquisado e desenvolvido por Rosane Volpatto