VITÓRIA RÉGIA, A DEUSA
VEGETAL
No mistério das águas
profundas dos rios e dos
lagos amazônicos há
sempre uma estória para
contar. Não há quem,
tendo visto uma
vitória-régia em toda
sua plenitude, adornando
um lago ou enfeitando um
rio, possa esquecer
aquele cenário de
verdadeiro encantamento.
O remanso dos rios ou o
lago que é seu viveiro,
são os espelhos de Jaci,
a Lua, vaidosa e
sedutora, reflete-se
para chamar a atenção
das caboclas que a têm
como visão do amor.
No cume das colinas, as
cunhãs esperavam o
aparecimento de Jaci,
acreditando que ela
trouxesse o bem do amor,
pois seu beijo
tornava-as iluminadas,
desmaterializando-as e
transformando-as em
estrelas...
Algumas maravilhosas
lendas se teceram em
torno desse assunto e,
em uma delas, que
descrevo logo abaixo, é
a Lua, com toda sua
magia, que irá criar a
vitória-régia, para que
tão bela quanto as
estrelas do céu, se
torne uma "estrela da
água", com um perfume
inconfundível que jamais
foi dado a uma flor...

LENDA DE NAIÁ

Na manhã do mundo, no seio de
uma primitiva tribo, contavam os velhos pajés adivinhos, Senhores de todos os
segredos da natureza que, quando a Lua ainda era considerada um deus masculino e
ainda quando esta se escondia por detrás dos montes da serra, coabitava com as
virgens de sua predileção.
O encanto destes encontros era
de tal grandeza e beleza, que os velhos sábios não possuíam palavras humanas
para descrevê-los, deixando as entrelinhas a cargo de nossa imaginação.
Aconteceu que a jovem
guerreira Naiá, filha do venerável chefe, princesa da tribo, de alva pele e
cabeleira muito ruiva tal qual uma espiga de milho verde, se impressionara com a
sugestiva fantasia daqueles amores lunares. E, por isso, no avançar da noite,
quando o sono fechava a vida da taba, e a erótica divindade sedutoramente
simulava tocar suas mechas de cabelo, a cunhã galgava as montanhas buscando
mergulhar sua alma na insolvência daqueles luminosos afagos, tão exaltados
pelos convincentes anciãos.
Afirmavam eles que a deusa hemafrodita, com a irradiosa insuflação dos seus beijos, transmutava em luz o
corpo das virgens predestinadas, apagando-lhes completamente a tinta de sangue
vermelha, vaporizando-lhes a carne. E fugia em seguida, conduzindo as
afortunadas amantes, sugando-lhes a vida, para deixá-las, assim
desmaterializadas, nos leitos nupciais das nuvens elevadas.
E, desta forma iam nascendo as
estrelas do céu....
Naiá ansiava pela maravilhosa
mudança do seu grosseiro e cotidiano viver terreno para aquela divina
existência eterizada. Mas a realidade enganava-a constantemente, passava as
noites perseguindo o noivo celestial que debruçava-se de colina em colina, cada
vez mais fascinante, entretanto, mais fugitivo de sua doentia paixão.
A virgem guerreira, definha
suspirosa e sofredora. Não houve poções, feitas pelas mãos miraculosas dos
pajés, nem sobrenaturais sortilégios de elevada magia, capazes de curá-la
daqueles obsessivos anseios. E assim, vivia essa jovem enferma, a vagar nas
noites enluarada, dilacerando-se pelas íngremes escarpas, uma psicose viva,
corporificada, entre lágrimas e soluços, cantando os seus delírios.
Certa vez, quando a sombra da
insânia mais anuviava o toldo do entendimento, viu no espelho de um lago, feliz
e tranqüilo, a imagem do pálido bem amado. Atirou-se em busca do ser
iluminado, bracejando agônicos paroxismos.
Semanas inteiras a tribo
debateu-se inutilmente em sua busca.
Os deuses selvagens,
entretanto, eram bons e agradecidos. A Lua, que gerara as águas, os peixes e as
plantas aquáticas, quis recompensar o sacrifício daquela vida virgem. Fê-la
então estrela das águas, poema triunfal de cor e perfume, que cantará
eternamente em nossa flora.
E, ao nascer do branco corpo
da cunhã, a misteriosa flor, desabrochou com intensa candura de espírito na
grande flor perfumada, transformando em espinhos toda a mágoa que tiranizava a
jovem índia. Depois, dilatou o quanto pode, a palma de suas folhas, para tornar
maior o receptáculo dos afagos da sua luz, amorosamente ofertada.
Todas as noites, Naiá
desnuda-se, arrumando jeitosamente as esvoaçantes e longas pétalas, para
receber, no tálamo das águas mansas, os beijos apaixonados do luar.

UMA LINDA
LENDA GUARANI

Dois jovens
indígenas se amavam, como sabem amar os que vivem longe dos tentáculos da
civilização. Moroti, uma morena linda como Iracema e Pitá, um rapaz forte e o
mais bravo dos guerreiros.
Viviam pelas
matas correndo e caçando com que organizavam encantadoras grinaldas e pescando,
na mansidão das lagoas, os peixes mais saborosos.
Um dia,
Moroti quis experimentar até que ponto ia o amor que lhe devotava Pitá e,
tirando do braço uma pulseira de contas silvestres, arremessou-a no rio Paraná,
ao mesmo tempo que dizia:
-"Querem ver
o que este guerreiro é capaz de fazer por mim?"
Estava a
margem cheia de índios que ali haviam se reunido para uma pescaria, início de
grandes folguedos. E Moroti não quis deixar escapar a oportunidade de mostras às
suas amigas, como era amada pelo mais valente varão daquelas terras.
Assim que o
bracelete da doce amada feriu a superfície das águas, Pitá, num mergulho
nervoso, atirou-se no Paraná, procurando apanhá-lo.
Moroti ficou
sorrindo, como só as filhas trigueiras das selvas sabem sorrir. As risadas dos
que assitiam à cena, adveio um silêncio constrangedor, pois o índio não voltara
à tona. As mulheres choravam, os homens lamuriavam-se, apenas Moroti continuava
a sorrir...
Foi chamado
às pressas o pajé, para explicar o que tinha acontecido.
A passos
apressados veio o feiticeiro da tribo, e, depois de meditar profundamente, com
voz compassada, explicou:
-"Pitá a
esta hora está num palácio encantado, recebendo os carinhos da fada das água (cunhã
payé)".
Moroti
deixou de sorrir. E o pajé continuou:
-"Assim que
Pitá mergulhou, a loira cunhã das águas levou-o para o seu palácio de diamante
e, envolvendo-o nos seus cabelos, cobriu-o loucamente de beijos...É preciso
libertar Pitá e somente uma jovem que o ame apaixonadamente poderá fazê-lo".
Moroti não
quis escutar mais nada: amarrou pesada pedra aos pés e deixou-se envolver pelas
águas numa renúncia adorável.
Durante todo
o dia e quase toda a noite ficaram os parentes aguardando a volta do casal
amoroso.
Aos
primeiros albores do dia seguinte, viram todos emergir das profundezas das águas
uma planta desconhecida, era "irupé": a Vitória Régia.
Do seio
potâmico surgiu uma flor, um verdadeiro amor: grande, de cores vivíssimas,
perfumada...As pétalas do centro eram alvas como o nome da donzela indígena,
Moroti, e as da periferia, vermelhas como o do guerreiro Pitá. A flor irrompeu
nas águas, esteve um momento acima do nível das mesmas, deixando espalhar seu
perfume e rorejar gotículas, como se fosse uma jovem que saísse do banho... De
repente, deu um gemido e desapareceu novamente, no seio das águas de onde
despontara.
O pajé
explicou:
-"Essa flor
representa o amor vencedor. Moroti libertou Pitá dos meneios da feiticeira das
águas que tantos guerreiros nos tem roubado. Façamos festa, cantemos, pois "cunhã
payé" foi vencida pelo amor puro de Moroti."
E na margem
do gigantesco rio, foi improvisada uma festança. Uma cantoria enfadonha exprimia
o contentamento daquela gente que acreditava no pajé, que para eles era a
encarnação da verdade.
A flor da
Vitória Régia só abre de dia. Assim que a terra se cobre de luto da noite, a
flor fecha-se de todo e submerge. Nesse momento Pitá e Moroti se abraçam e
dormem profundamente até o dia seguinte embalados pelo movimento das águas.
Daquele sono
amoroso nascem as sementes que perpetuarão a espécie, caindo ali mesmo no lado
do fundo, ou levadas para outras plagas nos intestinos dos peixes e das aves, no
pelo dos animais, pela torrente que balança os compridos pecíolos cobertos de
acúleos, e pela mão do homem que estuda a Natureza e que ama o belo.
A Vitória-Régia ama as
enchentes e as inundações. Á medida que as águas vão subindo, com elas vão
crescendo os longuíssimos pecíolos, que, às vezes, atingem cinco metros de
comprimento. Enquanto pequenos, esses pecíolos trazem nas suas extremidades
superiores folhas em formas de setas, as quais se vão tornando cada vez mais
oblongas até tomarem a face de uma enorme bandeja, quando as águas estiverem
na plenitude da cheia. Algumas folhas chegam a cobrir mais de três metros
quadrados de superfície azul ou esverdeada das águas onde vicejam.
Os maguaris, as garças e mil
outras aves passeiam sobre as lagoas, em todas suas áreas, pisando nas largas
lajes vegetais que coalham sua superfície e respiram a fragrância que se
desprende das belíssimas flores que embalsamam e o ambiente com um aroma
divinal.
Sua flor,
chega a ter, em sua plenitude, até quarenta centímetros de diâmetro, e sua cor
varia do branco ao carmim, exalando sempre o mesmo perfume incomparável. A época
de floração é em janeiro e em fevereiro.
A raiz da Vitória-Régia é
um tubérculo parecido com o do inhame, ao qual os indígenas dão o nome de
"forno d'água", em função da sua forma ser semelhante a um tacho de
torrar farinha. Esses feculentos tubérculos são grandemente apreciados pelos
índios, como pelos habitantes ribeirinhos.
Se o nível das águas
permanecer alto, estas belas ninfas aquáticas vivem cerca de dois anos. Se
porém, as águas descerem, a Vitória-Régia vai definhando, como se a ela
faltasse o alimento principal para viver, para o híbrido elemento é o nosso
ar.
Em agosto, já se pode
apreciar suas gordas cápsulas repletas de sementes que vão se depositando no
lodo do fundo. Enterram-se na lama diluída que se endurece totalmente, assim
que recebe diretamente a ação vivificante dos raios solares.
Encontram nas sementes, os
homens e as aves, um delicioso alimento, esgravatando a terra onde se encontram
sepultadas. Na procura desse extraordinário "irupé", o milho da
água dos indígenas, agrupam-se garridos bandos de pássaros, exibindo-nos
grandioso espetáculo. Com suas ricas e exóticas roupagens de plumas
substituem, naquele cenário encantador, os largos mantos verdes enfeitados de
flores das vitórias-régias. Esses pássaros levam consigo as sementes e
deixam-nas em algum lugar. As águas arrastam também uma quantidade incontável
de grãos. é deste modo que se propaga a existência da Vitória-Régia que é
encontrada, desde os mananciais dos afluentes da esquerda do rio Amazonas, até
os baixos tributários do Paraná e do Paraguai. Designam os botânicos essa
dispersão provocada pelos pássaros de "florula ornitocórea" e de
"hidrocórea", a produzida pela torrente.
A "Deusa Vegetal"
dos lagos e rios, era conhecida dos guaranis que a chamavam de "irupé",
outros indígenas tratavam-na de "iapucacaa". Seu nome, como
conhecemos hoje, é devido à um botânico inglês, que maravilhado com e
exuberância da planta, deu-lhe o nome da Rainha Vitória do Reino Unido.
A
Vitória-Régia é conhecida também como "Estrela da Água", porque sua flor
desabrocha completamente por volta da meia-noite, para submergir depois, quando
fechada. Na manhã seguinte ela aparece e abrindo lentamente as pétalas, exala o
mesmo perfume e irradia a mesma beleza.
Estrela das águas, poema triunfal
de cor e perfume,
Que cantará eternamente em nossa
flora.
Todas as noites desnuda-se,
Arrumando jeitosamente as
esvoaçantes e longas pétalas.
Para receber no tálamo das águas
mansas,
Os beijos apaixonados das noites
de luar.

A LUA MASCULINA

É fácil aceitar que o Sol é
um símbolo masculino e a Lua simboliza o feminino, mas nem sempre foi assim....
Tylor em seu livro "Primitive
Culture", relata-nos que os índios brasileiros, quando em estado
primitivo, adoravam e respeitavam a Lua e, conta-nos também, que os índios
botocudos, davam à Lua a mais alta posição. Um velho relato, acrescenta
ainda, que os caraibas consideravam a Lua mais que o Sol.
Na maioria destas consideradas
tribos, a Lua era freqüentemente chamada de o "Senhor das Mulheres" e
acreditavam que ela era o marido permanente das jovens índias. Os homens
acreditavam que sua função era meramente romper o hímen e abrir caminho para
o raio lunar entrar, engravidando-as.
A Lua não era, entretanto,
tão somente fonte fertilizadora das jovens guerreiras, mas era considerada
também como fonte de proteção e guardiã de todas as suas habilidades.
Plantar, cultivar e colher era tarefa feminina. Acreditava-se que só as
mulheres podiam fazer as plantas germinarem e crescerem, pelo justo motivo, de
somente elas estarem sob a proteção direta da Lua.
A mudança do deus da Lua para
a deusa da Lua, só se concretizou com o advento da adoração do Sol. Este
último, tomou para si todos os atributos fertilizadores, que pertenciam ao deus
da Lua, seu antecessor. As religiões posteriores a este acontecimento,
encontraram a Lua já tipicamente representada por uma deusa-mãe, um protótipo
de mulher, o eterno feminino.
É difícil estabelecer um
nexo-causal destas associações na comunidade científica atual. Mas mesmo
assim, estas idéias, sobreviveram até nossos dias, muito embora sua
significação verdadeira só seja percebida vagamente.
Não existe nada mais lindo e
romântico do que uma bela noite enluarada e sabemos que tal vislumbre mexe com
nossos hormônios sexuais, mas seus mistérios, permanecem desvendáveis...
Texto pesquisado e
desenvolvido por
Rosane Volpatto

Bibliografia consultada
Índios
do Brasil - Lima Figueiredo - Livraria José Olympio
No
País das Pedras Verdes - Raimundo Morais
Na
Planície Amazonas - Raimundo Morais
A
Amazônia que eu vi - Gastão Cruls
Amazônia,
a Terra e o Homem - Araújo Lima
Estórias e Lendas da Amazônia -
Anisio Mello

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