 

O Brasil tem um segredo na sua
natureza: é o mistério das Uiaras. Se alguém se atrever a conhecê-lo, se
resolver estudá-lo, começa a ver coisas tão lindas, nas suas montanhas, em
seus campos, em suas florestas e nos seus rios, que eleva-se de tal forma
no capricho de suas formas vivas, nos imprevistos de sua população
primitiva, que logo se prende à um amor tão grande, tão sincero e tão
profundo, que nada há que o afaste deste abismo.
Na lenda de seus primeiros
filhos, houve a idealização do Brasil, mas quem resolve conhecê-lo, não
resiste e mergulha em seus encantos e perde-se de amor em suas maravilhas.
A beleza misteriosa dos nossos
lagos e rios, sobretudo daqueles que ficam entre as grandes florestas do
norte, criou uma visão arrebatadora, que sobrevive em nossa tradição como
imagem interessante sob qualquer aspecto que se apresente.
Na galeria de nossos mitos,
Uiara aparece como a Ninfa das Águas, tendo características ao mesmo tempo
de mulher e homem. Mulher para seduzir os homens e homem para seduzir as
mulheres. Apresenta, portanto, propriedades andróginas, diferente de
outras figuras do lendário aquático.
Há estudiosos, que acreditam
que a lenda do boto seja a masculinização de Iara. O assunto em verdade
comporta discussão, dado ao grande número de conjecturas e contradições.
Iara, ao meu ver, nada tem a ver com a lenda do boto. Ela é uma deusa das
águas fluviais, ondina, sereia e Mãe D'água, portanto sua divindade
feminina lunar. Já o boto é uma divindade masculina solar. O certo, é que
a nossa Iara aparece tanto sob a forma de uma bela mulher, como a forma de
um homem que desvia e arrebata donzelas.
Verifica-se que as nossas Iaras
correspondem ao mito da Iemanjá e é também a mesma sereia dos tempos
gregos, metade mulher e metade mulher que Ulisses encontrou no mar e
aquela mesma Lorelei, a fada da Germânia. Quem olha descuidadamente o
espelho do rio ou da lagoa, verá a Iara em sua deslumbrante beleza, ela
abrirá os olhos como um doce convite e atrairá a vítima, levando-a para o
fundo de seu palácio encantado-a e matando-a no arrebatamento delicioso
das núpcias funestas.
Conta a lenda amazônica que uma
noite um índio sonhou com uma bela mulher de cabelos loiros, olhos azuis e
pele muito clara. Tal fada estava à entrada de um imenso castelo de
cristal recoberto de ouro e safiras de onde vinha uma música celestial. O
jovem apaixonou-se à primeira vista e ouviu a linda mulher lhe propor amor
eterno. Um dia navegando pelo rio, o índio viu formar-se sobre as águas
uma choupana e, por detrás da janela, apareceu a mulher de seus sonhos que
lhe sorria.
Apaixonado e enfeitiçado
foi até a choupana que flutuava sobre as águas. O pai do índio pode ver
que o corpo da mulher tinha uma cauda, igual a de um peixe, e que,
agarrando seu filho, se jogou na água, mergulhando para nunca mais voltar.
Alguns indígenas e caboclos juram já ter
visto a Iara, em muitos rios e igarapés. A crença neste mito é tão
grande, que, pelos lugares em que mora a Iara, segundo a tradição, ninguém
tem coragem de passar em determinada hora da tarde. Em algumas ocasiões,
comenta-se, ela mostra-se com pernas para logo em seguida transformar-se
em sereia. É nesta forma que atrai suas vítimas. Para livrar-se do poder
de sedução de Iara, aconselham os indígenas, deve-se comer muito alho ou
esfregá-lo por todo o corpo.
Numerosas são as lendas em torno de Iara,
seus encantamentos e artimanhas. É o mito que mais inspirou poetas
brasileiros. José de Alencar, por exemplo, incluiu no romance "O Troco de
Ipê" um conto sobre a Mãe-d'água, em que figura um palácio de ouro e de
brilhantes no fundo do mar.
LENDA DA IARA E JAGUARARI

Jaguarari, o filho do
tuxaua dos manaus, era belo como as frescas manhãs de sol nas águas do
Grande Rio. Tinha a força e a destreza do puma que domina a mata brava,
mas muito o excedia na audácia em perseguir a caça e afrontar o inimigo.
Quando ele navegava na sua
igara (canoa), deslizando sobre as águas silenciosas, que a proa, como a
asa de um pássaro, apenas frisava, as graças ariscas, por vê-lo, não
fugiam da beira do rio, e os jacamins vinham saudá-lo roçando os peitos no
chão.
Nas grandes festas com que
as tabas dos manaus, reunidos ao rufar do trocano, celebravam a admissão
dos mancebos à fita dos guerreiros, nenhum jovem igualou Jaguarari na
altivez do porte, nem na agudez da vista, nem na firmeza do braço.
Os velhos o respeitavam, as
moças o amavam, os guerreiros o admiravam e nos seus cantos o nome de
Jaguarari soava como o daquele que um dia, iria gozar do supremo bem nas
Montanhas Azuis, a sonhada Mansão dos Bravos.
Quando ao florescer da
frondosa mamaurana, a sua igara passava junto do barranco do rio, embaixo
da verde ramagem debruçada sobre a corrente, as brisas sacudiam os galhos
e derramavam nos negros cabelos do filho de tuxaua uma chuva de flores.
Nas tardes purpúreas,
quantas vezes a sua canoa, ruborescia pelo poente e tauxiada de sombras
esquias de árvores marginais, não subia em demanda da ponta do Turumã,
onde se quedava, solitário, até ao meio dia!
-"Que pescaria é essa,
filho, que se prolonga com as sombras, à hora em que só Anhangá se deleita
em correr as terras e as águas? Não ouviste alguma vez a sua voz temerosa
trazida pelo vento gemedor? Meu filho, meu filhinho! Anhangá espalha pelo
capim rasteiro e pelas folhas dos arbustos as sementes das dores que
matam!"
Assim falava a pobre mãe do
tapuia quando via o filho entrar na habitação paterna à horas mortas,
vindo dos lados do rio, e ficar insone, noite a dentro, com as pernas
pendentes na rede, os cotovelos fincados nos joelhos e os olhos fundos e
tristes a olharem, pungentemente, para fora, para o rio, para a noite,
para o seio negro da escuridão...
As enternecidas palavras de
sua mãe, Jaguarari respondia apenas com um olhar, o olhar daqueles olhos
tristes e fundos, onde se sentia a crispação de vertigens das profundezas.
-"Filho, não faz muito
tempo, a alegria esvoaçava à flor de teus olhos como as marrequinhas à
tona da lagoa. Por que foi ela fazer tão longe de ti e de mim o seu
ninho?".
-"Mãe!", murmurava ele
apenas, fazendo um vago gesto.
E o seu corpo, que tinha o
frescor e a seiva do talo de uma palmeira, murchava sempre; o cupim roaz
picava-lhe o coração.
Ele acompanhava ainda o
tuxaua nas expedições de caça e o seu braço não treme ao rugido do
canguçu. Mas, ao cair da tarde, evita os jovens guerreiros que armam laços
para prenderem as aves silvestres e foge dos grupos que vagueiam pelas
coroas do rio atirando redes de pesca.
Sozinho, salta na leve
igara e voa até à ponta do Turumã, onde os companheiros o vêem de longe,
com os olhos fitos no espelho das águas, solitário e tristonho como o
meditativo maguari.
Um dia, cheia de apreensões
funestas, sua mãe exclama:
-"Filho, os juruparis
perversos envenenaram o ar que respirar. Acauã (pássaro agoureiro) vem
agora cantar à nossa porta. Teu pai quer fazer longe daqui a nova taba
para nossa gente. Só assim a ave da alegria voltará a esvoaçar em teus
olhos..."
Depois de profundo
silêncio, Jaguarari suspirou:
-"Mãe, eu a vi!....Eu a vi,
mãe, boiando em flor como os nenúfares nas águas do igarapé. É linda como
a lua nas noites mais claras. Eu a vi mãe! Seus cabelos tem a cor das
flores do pau-d'arco e o brilho do sol; suas faces tirando o rosado das
penas da colhereira e das flores da sapucaia. Os passarinhos que mais
cantam não cantam como ela; ela é bela como nenhum homem das tabas do
Grande Rio viu, nem verá. Ela cantava e à sua voz a própria cachoeira do
Turumã cessou de roncar e parou, de certo para ouvi-la. Ela olhou para
mim, ó mãe, e estendeu-me os braços. Depois, repartiram-se as águas e ela
desceu para sua casa, que foi esquecida lá no fundo pelo céu, num tempo
não muito longe, quando o céu se estendia como embaixo de nós, a campina
matizada de flores, antes de subir e de arquear sobre as nossas cabeças a
sua concha estrelada. Mas eu quero vê-la novamente, eu quero ouvir ainda o
seu canto!"
A tapuia horrorizada
clamou:
-"Foge, foge daquele
maldito lugar! Nunca mais a tua igara demande à ponta do Turumã. Foge, meu
filho! Tu viste a Iara! O seu canto é agonia! Foge Jaguarari! É a Iara! De
dentro de seus olhos verdes te espia a Morte!"
E em soluços a velha tapuia
atirou-se por terra.
No dia seguinte, à hora em
que os trocazes aos casais passam alto, fendendo os ares em demanda do
pouso da noite, a igara de Jaguarari deslizava nas águas do Rio Negro.
Os mancebos manaus que o
viram passar, disseram:
-"Lá vai Jaguarari pescar
tucunaré".
Mas, de súbito, de um grupo
de mulheres que lavavam ânforas de barro à beira do rio partiu um grito:
-"Corre, gente. Corre, vem
ver!"
Acudiram os jovens e
pararam atônitos, olhando a barra o horizonte, fendia as águas com
Jaguarari de pé, abertos os braços, como uma grande ave selvagem prestes a
desferir o vôo. A igara parecia marchar em direção ao sol, a fim de
precipitar-se no seu disco abrasado. E ao lado do jovem guerreiro,
enlaçando-o como a beijá-lo, surgia, num halo de luz argêntea que se
destacava no rubor do poente, um corpo alvo, de formas harmoniosas,
coroado de longas madeixas de fios de ouro a esvoaçarem.

-"A Iara! A Iara!" -
conclamavam, em grito uníssono, os guerreiros e moças dos manaus para o
meio da taba.
E foi a última vez que
viram o filho do tuxaua navegar nas águas escuras do rio...
O
ARQUÉTIPO DA TRANSFORMAÇÃO

A canção das sereias chama o homem para
abandonar-se e lançar-se ao fundo do rio para morrer e emergir em uma nova
vida com um novo entendimento. As sereias são criaturas da água, que por
sua vez possuem um valor simbólico de longo alcance. Para água, convergem
uma dualidade, ela nos dá comodidade e elasticidade, assim como é fonte de
abundância. É a água que usamos no batismo e representa a purificação e
renovação espiritual. Mas a água também é destrutiva nas inundações e nos
afogamentos, que aniquilam e matam. As sereias incorporam todas estas
qualidades e são símbolos tanto da morte, como da imortalidade. Elas
clamam pelo homem ao desconhecido, impulsionando-o a abandonar o que é,
para transformar-se em algo novo. O medo das sereias é o medo da
transformação, o medo de aprender, o medo de perder o controle, o medo de
ascender ao inconsciente.
No livro de M. Esther Harding, "Os
Mistérios da Mulher", está descrita uma impressionante associação entre as
fases da lua com as fases da deusa. A cada fase da lua, conta, a deusa
veste um diferente traje de escamas, que é o traje de seu instinto.Os
peixes eram dedicados a Atárgatis, a deusa lua de Ascalon, uma das formas
de Ishtar, que era algumas vezes representada com rabo de peixe. Esta
representação refere-se a extrema inconsciência do instinto feminino. Aqui
a satisfação do instinto é essencial, não importando as conseqüências do
tal ato.O aspecto deusa-sereia corresponde ao período da Lua Escura, onde
ela está inteiramente sob o domínio do instinto. Esta fase pertence à
esfera dos mistérios da mulher e, para um homem olhar para a ela nestes
dias, significa "doença e morte", pois estará agindo como fêmea,
desprezando qualquer consideração humana.
É a "Viúva Negra" nos seus melhores
dias. Muitas mulheres não estão conscientes do poder desta qualidade
feminina e então, um efeito desastroso pode ocorrer em virtude de sua
desatenção ao papel de destruidora de seu amor. Mas há também algumas, que
conscientes do seu poder sobre os homens o usam inescrupulosamente para
vantagens pessoais. Para aceitar o poder desta Lua, sem se deixar sucumbir
a ele, é necessário autodisciplina e sacrifício do
auto-erotismo.
Uma mulher que se confronta com tais
aspectos na escuridão de seu coração pode aprender a lidar melhor com este
conflito em vez, de tornar-se responsável de atitudes irreconciliáveis e
opostas. Em verdade, esta energia instintiva se transformará em algo bom e
utilizável na vida. Esta energia fluirá naturalmente em seus
relacionamentos aprofundando-os, ou pode tornar-se um escape direcionado à
um trabalho criativo, ou ainda, suprirá a força motriz que torna possível
a construção de uma personalidade mais completa, fundamentada tanto no
lado sombrio quanto no aspecto luminoso.
Texto pesquisado e desenvolvido por
Rosane
Volpatto
Bibliografia consultada
Os Mistérios da Mulher - M. Esther
Harding
Bibliografia do Folclore Brasileiro -
Braulio do Nascimento
Revista Selva - Afonso Arinos; n.
4, 03/1947, RJ
Lendas Brasileiras - Câmara
Cascudo; EDIOURO; RJ

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