A
MISSA DO VAQUEIRO

NO LAÇO DA HISTÓRIA.....

Segundo os historiadores, a
ocupação efetiva do território do Ceará deu-se a partir de 1603.
Nesta terra, foram encontrados,
pelos que primeiro chegaram, índios dos troncos tupis: tabajaras, parangabas,
paranamirins, paupinas, caucaias, potiguaras, paiacus e tapebas. E os jês:
tremembés, guanacés, jaguaruanas, canindés, genipapos, baturités, icós, chocós,
quiripaus, cariris, jucás, quixelôs e inhamus. Muito embora, grande parte destas
tribos tenham sido dizimadas, elas permanecem vivas na cultura da atualidade e
se fazem presentes nos hábitos, na comida, na arte popular, nos nomes, no
vocabulário e na etnia.
Acredita-se que foi Américo Vespúcio o primeiro europeu a navegar por estes mares encrespados de puro
frenesi. Mas mesmo após a primeira década após o descobrimento do Brasil,
o Ceará ficou abandonado à sorte de piratas franceses, continuando com o domínio
dos tupis na costa e jês (tapuias) no interior.
Em 1534, com a instituição das
Capitanias Hereditárias, este feudo foi concedido a Antonio Cardoso de Barros,
que nunca tomou posse.

O Ceará só passa a contar história
a partir do ano de 1603, em pleno domínio espanhol do rei Felipe III, quando
Pero Coelho de Souza obteu a permissão para colonizar o "Siará Grande". A
colônia passou então a chamar-se de "Nova Lusitânia".
Com a ajuda dos índios tabajaras e potiguaras, Pero Coelho de Sousa enfrentou os franceses, detendo-os às margens
do rio Parnaíba. Mas devido as condições climáticas adversas e falta de
recursos, foi obrigado a bater em retirada. Bem mais tarde, ele acabou sendo
devorado pelos índios, após um naufrágio na ilha de Marajó.
É Martins Soares Moreno, que
acabaria sendo o verdadeiro fundador do Ceará. Ele tinha sido, anteriormente, um
soldado de Pero Coelho de Sousa, destacando-se pela aliança de amizade que
estabeleceu com os índios. Chegou ao Ceará em 1612, em companhia do padre
Baltazar João Correia e construiu um pequeno forte chamado de São Sebastião.
Após os combates com os franceses no Maranhão e tentativas rechaçadas de invasão
de holandeses, obteve uma Carta Régia, concedida por Portugal, tornando-se
então, o senhor da Capitânia do Siará. A paixão de Moreno por uma índia serviu
de inspiração e tema para o romance "Iracema", de José de Alencar, escritor
cearense.
Os holandeses de Pernambuco, nesta
época, tinham sob seu domínio as regiões até o Rio Grande do Norte, em 1637
desembarcaram em Mucuripe (Fortaleza, atualmente), sediando e tomando o forte na
foz do rio Ceará, mas acabaram expulsos pelos índios. Na enseada de Mucuripe,
haviam construído uma fortificação à qual deram o nome de Schoonenborch. Este
forte serviu de QG de todas as operações militares e extração da prata na Serra
de Maranguape. Em 1654, foram expulsos definitivamente pelos portugueses e o tal
forte passa a ter o nome de Fortaleza da Nossa Senhora de Assunção, dando origem
ao futuro nome da capital cearense.

Neste primeiro momento da história
do Ceará, o desenvolvimento da região concretizava-se somente na orla marítima,
com o plantio da cana-de-açúcar. Mas a notícia das excelentes pastagens do
sertão e o clima mais ameno, levou os aventureiros a se aprofundarem nestes
espaços até então vazios. Foram aos poucos expulsando ou domesticando os índios.
Durante 40 anos foi acelerada esta interiorização, que comportava uma economia
essencialmente pecuarista. O boi passou a ser moeda corrente, que garantia a
alimentação, os tecidos, as louças, os equipamentos e outras utilidades
indispensáveis ao bom funcionamento das fazendas.
Um pouco mais tarde, o boi
transportado à pé até as cidades portuárias, onde era abatido, salgado e
despachado, o que fez impulsionar o desenvolvimento dos portos de Aracati, Acaraú e Camocim.
É nesta altura da história que
colore as paisagens cearenses o vaqueiro nordestino, que formou-se nesse cadinho
de mundo ecológico do sertão, formado através de ingredientes étnicos retirados
do branco, do vermelho e da tintura do negro. Desta fusão de gostos e raças, eis
que surge um homem forte e indomável.

Nos primórdios da expansão do gado
pela imensidão sertaneja, foi o gentio o elemento humano a permanecer nos
currais. O índio também fez parte desta maratona. Este, avesso ao sedentarismo
das fábricas de açúcar ou o plantio, adaptou-se com a criação do gado, pois
sentia-se livre, à solta, embrenhando-se no mato em busca das reses perdidas.
Dormia ao relento, muito feliz, abaixo do formigueiro de estrelas, tendo como
teto algum frondoso galho de jequitibá, sabendo que a floresta o aguardava cheia
de ciúmes. Vivia ele, em pleno gozo de seus anseios e liberdade, sem ninguém
para lhe impor dominação, a não ser uma incipiente domesticação. Mas a guerra
contra os índios no século XVII, carregou o homem branco novamente para a
interiorização. Mas quando finda as desavenças, fixaram-se na região,
trabalhando lado a lado com o indígena nos trabalhos de pecuária. Deste modo,
processou-se a miscigenação. Surge então, um tipo étnico caldeado, que Euclides
da Cunha chamou de "Sertanejo". É considerado um homem forte, destemido,
resoluto e improvisador que se integra perfeitamente ao ambiente pastoril, como
se dele sempre fizesse parte.
De acordo com Luis Câmara Cascudo,
o Ciclo do Gado determina o individualismo em seu participante. Dá-lhe a noção
de independência, de autonomia, livre arbítrio, além do arrojo pessoal. Este
novo homem, movimenta-se livremente nas caatingas, ficando responsável por todas
as iniciativas imediatas que visam defender os animais entregues aos seus
cuidados. A presença de tamanha responsabilidade, gera um sentimento de
autoridade, de auto-determinação e de mando próprio.
Na solidão que lhe impõe este
ofício, arranha por noites, sua viola, que vai torná-lo um cantador
não-profissional, um improvisador, assim como um cangaceiro que possui todas as
armas para enfrentar a lei que sempre o ignorou.
A aridez e a agressividade do
sertão, a teimosa seca trazendo consigo a esterilidade da terra, sempre afastou
qualquer possibilidade de sonho agrícola, para esta região. Ali só perpetuou o
asilo do tapuia.
"É natural, diz o valoroso
Euclides da Cunha, que as populações sertanejas, de par com as que se
constituíam no médio São Francisco, se formassem ali com a dosagem preponderante
do sangue tapuia. E lá ficassem ablegadas, envolvendo em círculo apertado
durante três séculos, até nossa idade, num abandono completo, de todo alheio aos
nossos destinos, guardando, intactas, as traições do passado".
Todos estes ingredientes
associados à maravilhosa argila desta terra, modelou-se o vaqueiro.
Complementa, Euclides da Cunha: "O
vaqueiro criou-se em uma intermitência, raro perturbada, de horas felizes e
horas cruéis, de abstança e misérias - tendo sobre a cabeça, como ameaça perene
o Sol, arrastando de envolto no volver das estações, períodos sucessivos de
devastações e desgraças". Fez-se homem, sem tem infância. Salteou-o,
intercalando-lhe agruras nas horas festivas da infância, o espantalho das secas
no sertão. Achou-se envolvido em um combate sem trégua, sugando-lhe quase todas
as energias. "Fez-se forte, esperto, resignado e prático".
A MISSA DO VAQUEIRO - (Da Saga à
Festa)
A Missa do Vaqueiro é um evento
religioso, tradicional na cultura popular do Sertão Pernambucano. É um
espetáculo turístico cultural que tem sua origem assentada em uma história
sangrenta.
Precisamente na madrugada de 8 de
julho de 1954, o vaqueiro Raimundo Jacó, é traiçoeiramente assassinado com uma
pancada na cabeça nas caatingas do Sítio de Lages, distrito do município de Serrita, localizado no alto sertão Araripe, localizado a 553 quilômetros de
Recife. À noite anterior, o vaqueiro havia passado em companhia de Miguel Lopes,
com quem cultivava um rixa antiga. Acredita-se que foi Lopes que cruelmente
roubou a vida de Raimundo, fazendo com que o sertão se cobri-se de luto e dor. A
pedra, manchada de sangue, que foi usada para cometer o crime, foi recolhida
como prova evidencial e entregue à Polícia local, mas misteriosamente
desapareceu. O crime, portanto, sem evidências, nunca foi solucionado.
Serrita sempre foi uma região de
muito ódio e crimes impunes. O cantor Luiz Gonzaga, primo de Raimundo, em um de
seus CD's, gravado ao vivo, chegou a dizer que o "covarde crime", tinha "motivos
políticos".
E, assim, em torno de Raimundo
Jacó, criou-se um mito, sendo consagrado, como protótipo do vaqueiro, símbolo de
dedicação e coragem. O espírito místico deste povo, aliado ao credo do homem à
terra, transformou o lugar crime em sagrado, passando a ser motivo de constante
romaria. A este vaqueiro mártir foram atribuídos a partir de então, vários
milagres.
No terceiro domingo do mês de
julho de 1971, ao ar livre, por decisão do Padre João Câncio, apoiado por Luiz
Gonzaga e o poeta Pedro Bandeira, conhecido repentista do Cariri, foi celebrada
a primeira Missa do Vaqueiro, uma homenagem à Raimundo Jacó, o vaqueiro
covardemente assassinado. Neste dia, como nos atuais, reúnem-se vaqueiros de
vários estados do Norte e Nordeste que confraternizam diante da fé cristã. Eles
sobem ao altar e fazem suas oferendas que se constituem de sua indumentária de
couro, arreios e instrumentos usados no pastoreio.
Esta não é uma homenagem tão
somente a Raimundo, mas a todos os corajosos vaqueiros nordestinos, que desafiam
no seu dia-a-dia, a seca, a fome e o perigo do Sertão Nordestino.
Durante a celebração da missa, a
maioria do público assiste a cerimônia montada em seus cavalos. No momento da
comunhão, a hóstia é substituída por queijo, rapadura e farinha de mandioca,
alimentos do cotidiano sertanejo.
Em 1973, a Prefeitura do
Município, erigiu uma estátua de Raimundo Jacó, esculpida por Jota Mendes, um
artista de Petrolina (PE). Já em 1974, foi construído o Parque Nacional do
Vaqueiro e em outubro deste mesmo ano, foi criada a Associação dos Vaqueiros do
Alto Sertão.
Na semana que antecede à Missa do
Vaqueiro, o município de Serrita vive em clima de euforia e festa folclórica,
com vaqueada, banda de pífaros, cantorias, repentistas, aboiadores, além da
feira de artesanato, mas que também oferece ao visitante as comidas típicas à
base de milho e mandioca, beijus, rapadura, caldo de cana, etc.
Para estes eventos festivos,
comparecem mais de 40 mil turistas para alegria do artesanato e o comércio
local.

A celebração que iniciou-se como
um ato de protesto contra a impunidade, torna-se um espetáculo do Calendário
Turístico de Pernambuco.
Bibliografia consultada:
BRASIL, Histórias, Lendas e
Costumes - Editora Três. Texto de Alceu Maynard Araújo. Desenhos: José
Lanzellotti
Cascudo,
Luís de Câmara - "Tradições populares da Pecuária Nordestina".
Rio de Janeiro, SIA, 1956
MACEDO, José Norberto. Fazendas de
gado do Vale São Francisco.
Texto pesquisado e desenvolvido
por
Rosane Volpatto




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