LADAINHA NOS
ARES
O verdadeiro
sentido da música da nossa pátria, nasceu da pureza e da originalidade de
nossos pássaros. É bem forte a brasilidade nos espécimes que povoam as
nossas matas e cristalizam fantasias. Reino das aves, império da sinfonia,
visitada pelos mais soberbos compositores, que irrompem feito barítonos de
ópera, inspirados, videntes e iluminados. |
Da orquestração
viva e natural dos rumores da mata e dos gorjeios dos pássaros surgiu o idioma
guarani. À sua maneira, nossos selvagens consideravam certas aves como entes
superiores e tributavam-lhes especiais diferenciações e devoções, admitindo a
existência de um poder que se comunicava à pessoa que os possuísse.
Nenhuma flauta,
nenhum violino, cítara ou Harpa, ou embalo de sonatas, consegue os acordes
algumas vezes sedosos, outras estridentes, às vezes sentidos ou magoados, outras
felizes e intrigantes, tão voluptuosos, que enlouquecem ou enternecem, são
iguais aos sons de nossas aves. Em cada ritmo pode aflorar uma lágrima, em cada
nota uma dor ou um drama a ser vivenciado...
Segundo uma lenda,
antigamente falavam as aves. Pouco a pouco foram perdendo este dom e só restam
algumas privilegiadas.
Existem
efetivamente pássaros que falam algumas palavras distintas, de modo a parecer
que foram abençoadas e colocadas para viver no Brasil. Seja como for, verídica
ou não, a verdade é que alguns pássaros têm a habilidade de falar algumas
palavras em português: uma pomba pequena (columba squamosa) canta no ermo das
florestas, muitas vezes horas inteiras, um só "fico"; o Bem-te-vi (Lanius
Pitangus Lath) grita seu nome na aproximação de qualquer pessoa. Esta ave
é um guarda e observador muito competente. Entre os argentivos grita "benteveo";
aos guaranis: puitanuá e os habitantes da Guiana francesa: qu 'ést ce, qu'íl dit?.
Aqui é a maior prova do prodigioso alcance da imaginação. Nas Missões Argentinas
tem o nome guarani "Pitanguá". Quando lá canta perto de uma casa, anuncia um
nascimento próximo, contrário de outras aves que prognosticam a morte.
O Bem-te-vi é um
pássaro enxerido, que repara tudo que se passa à volta, escarnece, insere em
tudo o seu comentário....Muito gracioso é o modo por que se porta quando se
encontra com um bom amigo: bate com as asas, arrepia propositalmente as penas do
cocoruto e não findar estes alvoroços de amizade quando três ou quatro deles
metem-se por uma conferência amigável. Com voz estridente repetem-se vezes sem
conta a forma estereotipada da saudação muito prolongada da última sílaba.
O jacú (Penelope
cristata), finge caçoar com o caçador que errou o tiro, quando solta seu
estridente "ha-ha". Esta ave também entre os índios Onas da Terra do Fogo, ria-se
dos caçadores inábeis e estes se irritavam tanto que os procuravam para matá-los,
pois estavam convencidos que o pássaro zombava deles.
Frei Gaspar de Carvajal, no seu
relatório sobre o descobrimento da Amazonas pelo capitão Orellana, publicado
pela primeira vez por Medina em 1894, diz, pág. 72 que diversas vezes lhes
apareceu uma ave assentada na árvore, debaixo da qual tinham sua pousada e que
muito distintamente e com pressa repetiu:
-"Hui!Hui! Fugi! Fugi!" e acrescenta
que os avisou dos perigos.
No Chile são conhecidas duas aves
que falam, a "Trile" (xanthorpus cayensis) que também chamam "Chile", porque é
este seu grito. Autores chilenos derivam desta ave o nome de seu país. A outra é
o "Chinco" (fringilla matitina), é cantor, mas canta uma só frase, que o povo
reproduz assim: "Há visto a mi tio, tio Austin?" e realmente assim parece soar.
Os índios que costumam observar o
canto das aves para seus agouros, entristecem-se muito por acreditar que a ave
lhes anuncia que já acabou a erva-mate, que não podem dispensar. Dando-lhe o
caso que a provisão de erva-mate acaba, então admiram a perspicácia do Opacá,
que sabe o que se passa e vem dar-lhes no rosto com sua imprevidência.
Outro falador é o Tahan (chauna
chavaria), que é também uma agoureiro e chamam-no de sentinela. Os argentinos o
chamam a "ave literária, pois não se pode fazer uma descrição fiel dos pampas
sem entrar em cena o Tahan. A sua cor é escuro-cinzenta e um colarinho de penas
brancas cinge-lhe o colo. As asas são armadas de em esporão vermelho, duro e
forte com que se defende. Seu canto ouve-se de longe:
- Tahan! Tahan, que que dizer: Vamos!
Vamos! Para o vulgo é significativo, pois estas aves velam de noite e sentindo o
ruído de gente a se aproximar, começam a gritar. Sendo assim, avisa qualquer um
sobre uma cilada, ou anuncia uma visita inesperada.
"Maria-é-dia", é uma ave da família
dos Trogloditídeos, que canta de madrugada para avisar de que "já é dia". Outro
espécime da fauna amazônica com funções de despertador é o famoso "jacumim", que
solta seu canto impreterivelmente todas as manhãs às 4 horas, parecendo uma
rajada de metralhadora.
Os seringueiros em plena mata, ao
ouvirem as rajadas do "Jacumim", levantavam-se porque já era hora de levantar
para iniciar o trabalho.
PERSONIFICAÇÃO DAS AVES
Há algumas aves, as quais foram
atribuídas qualidades diferentes, imaginárias simplesmente umas, supersticiosas
outras. Foi particularmente no Novo Mundo que se formou o que podemos chamar de
"personificação das aves", dando-lhe muitos nomes de pessoas a uns e a outros,
investindo-os à cargos e ofícios.
Muitas são as que trazem o nome de
João: João Barbudo (bucco striatus), João Pobre (saphophaga nigricans), João
Doido (monassa torquata), João Tolo (bucco jacurú). Este último, melancólico e
imóvel, como que adormecido, de natureza misteriosamente grave é conhecido como
o filósofo das matas. Os mais conhecidos são o João de barro e o João grande.
Os argentinos chamam o seu lenheiro,
também de José Chavarria, porque lhes parece que haja uma semelhança entre a
pronúncia destas palavras e o seu canto.
Um picapau (melanrepes flavifrons)
de fronte e papo alaranjado, abdômen vermelho, tem o nome de Benedito (Rio de
Janeiro). Outros são: Pai-Pedro (arremosilens), Pai-Agostinho (myachus cantans),
ave aquática Margarida (mergus maior) e Maria faceira (synalaxis rutilans).
Certos animais e em particular as
aves, por seu aspecto, por seu instinto ou por sua maneira de viver, parecem
imitar qualidades de uma pessoa ou executar coisas de que é capaz só um ser
racional. A imaginação, à vista disso, se compraz em fingir dotados estes
animais de qualidades humanas que de um modo mais ou menos patente arremedam, ou
em atribuir-lhes os mesmos ofícios e cargos que o homem exerce. Assim,
encontramos nas vastas regiões que compreende a bacia do Prata, forneiros,
lenheiros, pedreiros, carpinteiros, ferreiros, etc.
O ferreiro, é do tamanho de uma
pomba, branco, com uns cambiantes verdes na cabeça e é muito apreciado por sua
voz forte e metálica que, ouvida de longe, parece mesmo, imitar o ferreiro, ora
batendo com o martelo na bigorna, ora afiando os dentes a uma serra.
Os pica-paus, figuram como
carpinteiros, pois têm um bico forte e afiado como um machado, com que golpeiam
violentamente os troncos das árvores, fazendo-se ouvir a considerável distância.
Afirmam alguns, que é dado a feitiçaria: quando se prega a entrada do ninho com
uma tábua, voa a ave para longe, procura um certa folha com a qual toca a tábua
e imediatamente os pregos caem. Ninguém atreve-se a guardá-lo em cativeiro.
Dizem que acarretaria infalivelmente a morte ou desgraça de uma família. Quando
faz ouvir o canto, um assobio claro, um tanto prolongado, para vizinhança
anuncia que alguém não tardará a morrer. Quando já tiver morrido, atormentará
seus moradores, com imoderados gritos.
Mas quem é afoito a gritarias é o
quero-quero (vanelus spinosus).
Sobre o quero-quero corre uma lenda:
Quando a Santa Família, fugiu do
Egito, viajava a noite e então todas as aves se calavam, para não chamar a
atenção dos perseguidores, só o quero-quero gritava, "quero", quero cantar e
deste tempo em diante estava destinando a gritar desta maneira.
Se para alguns foi o quero-quero um
traidor, para outros é um dedicado amigo. Lobo da Costa em sua inspirada poesia,
assim se refere ao seu canto:
"Se um grito de fero açoite
Estruge no ar austero
Não tremas: é o quero-quero
Que vem te dar boa-noite!"
Há poucas aves que revelam tanta
energia e coragem, como o quero-quero, talvez por isso, e por trazer as asas
armadas de duas navalhas, recebeu o título de "sargento". Outros
representantes de graus militares são os "capitães de bigode" (bucconides) e "polícia
inglesa"(leistes guayanensis).
Também a magistratura tem seu
representante: o juiz do mato (monasa leucops). Com triste e prolongado acento,
queixa-se da perda de sua fortuna o "fidalgo pobre", a viva representação de um
conhecido provérbio do "pai cavalheiro e do filho mendigo".
Ao lado deste há o "gaudério", que
põe os ovos em ninhos de outras aves. Veste-se de branco e preto com muita
elegância e traz na cabeça uma touca, símbolo de nojo.
Todas estas aves, por suas
qualidades e por suas lendas, imprimem ao folclore sul-americano uma fisionomia
toda particular.
Texto pesquisado e desenvolvido por
Rosane Volpatto



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