JOÃO DE BARRO
Não há dificuldade de se
reconhecer um ninho de João de Barro (furnarius rufus). Na vizinhança
imediata, nas árvores que as rodeiam ou nos paus dos currais, encontra-se
uma casinha deste deste amigo do homem. Até nos postes elétricos e
telefônicos, como se quisesse colocar-se em contato com a sociedade, vê-se
uma bola de barro, que mais parece um diminuto forno antigo de padeiros.
Não alcança o tamanho de um
sabiá. É na cabeça e dorso, se não tirante ao roxo, de cor ferrugem
acanelada e na parte inferior mais claro, tendo o peito quase branco.
Na
Argentina ele é conhecido como "HORNERO (forneiro devido ao formato do
ninho, semelhante a um forno barro)". Na Bahia e Pernambuco é conhecido por
"AMASSA-BARRO".

Tem esta ave um porte corajoso,
nada tímido, chega-se com estranha confiança bem perto do homem, corre, pula
e grita, como que dando risos e gargalhadas, como se soubesse que é bem
vista e bem vinda.
O que todos mais admiram nele é
vê-lo, ouvi-lo cantar com sua forte voz que pode-se comparar ao entoou do
galo, batendo também como este as asas, imitando-lhe a toada que vai de alto
a baixo, acompanhado quase sempre pela fêmea. Tem a mania de interromper as
pessoas, que ao pé dele conversam e de cobrir com a sua estridente voz a
humana, de sorte que não resta mais do que resignar-se ao silêncio até que
emudeça.
A ousadia e atrevimento desta
ave, que é estranha a todos que pela primeira vez a observam, têm uma razão
no respeito que lhe devotam. Pois os olhos não só dos brasileiros mas
também dos povos do Rio da Prata, passa por ave santa e cristã. O
joão-de-barro não trabalha no domingo. E, se por acaso, for surpreendido
neste dia santo na construção da sua casa o vulgo alucinado encontra uma
razão que explique esta exceção, por exemplo, para que depois de uma seca
deve aproveitar o aguaceiro com que prepara o barro necessário. Caso
contrário, ficaria sem albergue para si e seus filhos. Como as Igrejas têm a
porta para o oriente, assim também ele dá a abertura e rumo do seu ninho a
mesma orientação. Há, entretanto, naturalistas que dizem que não é regra.

Reconhecem, todavia, que nosso
pássaro produz uma obra arquitetônica que é capaz de excitar admiração.
Primeiro lançam ambos, macho e fêmea, os alicerces ou formam de barro da
estrada, o soalho da casa, trazendo-o em glóbulos do tamanho de uma bala de
espingarda, que com o bico e os pés estendem. Sobre este plano de 22 cms de
comprimento, começando ao mesmo tempo por dois lados opostos, levantam as
paredes da casa, que, quando em certa altura, deixam secar. Recomeçam a
obra, dando as paredes já uma inclinação para dentro e, depois de mais uma
interrupção, dão-lhe a última mão, fechando a começada abóbada e deixando a
mencionada abertura oval. Dividem a casa por uma parede interior em dois
compartimentos, servindo o anterior como a ante-sala, de onde se pode
alcançar por outra abertura para a câmara reservada para a própria cama dos
filhotes. Assim estão seguros contra a importunação de certas aves rapinas.

A cama era revestida de feno, de
penas de galinha ou flores de algodão. O casal, como em tudo, são
inseparáveis, também revezando o difícil trabalho de incubação dos ovos e da
alimentação dos filhotes.
Podiam-se se chamar símbolo da
vida doméstica e é por isso que os brasileiros gostam de vê-lo e ouvi-lo
pela vizinhança.
Quando o João de barro e a
Maria-de-barro assumem compromisso, é para todo o sempre. Eles vivem sempre
em casais que nunca se separam. Quando morre o companheiro passam o resto da
vida só.
Muitas vezes encontram-se seus
ninhos sobre as estacas dos currais e cercas dos caminhos ao alcance da mão,
porém ninguém tiram-lhe os ovos. Um pássaro tão social e tão habilidoso não
devia carecer de alguma virtude extraordinária: "em casa com ninho de João
de barro não cai raio". Tão pouco se admira que tenha uma lenda que é mais
uma prova de como as idéias dos antigos guaranis foram herdadas, posto que
modificadas, por seus modernos descendentes.

Reza mais ou menos assim:
Um velho caçador vivia com seu
filho único e com seus cães no mais apartado dos bosques. Dedicava a
existência a ensinar seu filho todos os conhecimentos e práticas que
constituem um bom caçador. Chegado a idade viril, o filho nada ignorava,
quanto é necessário para sustentar uma família. Tinha feito expedições mais
extensas a regiões habitadas. Em uma destas ocasiões ouviu a encantadora voz
de uma donzela, que esperava um dia esposar. Pediu a seu pai para que
visitasse com ele aquele acampamento, para ver se aprovava sua escolha. O
velho pai não colocou impedimento ao desejo do seu filho, mas convidou-o
para uma festa que de vez em quando celebrava o morubixaba de sua tribo nas
margens do Uruguai.

Durante um mês, preparava-se o
velho e o moço para a grande festa das "apresentações", a qual tinha por fim
apresentar os jovens fortes de mais valor e arrojo ao morubixaba, ao seu
Conselho Patriarcal e a toda tribo. Seguiam-se grandes bailes e a escolha da
mulher, ou aprovada ou disposta pelos maiores, sempre que o jovem tivesse
passado as provas. Estas consistiam normalmente na veloz carreira, na prova
da natação e num jejum rigoroso de nove dias, em que não podiam tomar senão
o sumo da yatay ou de outra planta silvestre.

O jovem do nosso mito não foi
tão lerdo de assistir ao grande torneio sem dar aviso à sua noiva, Ipona,
que figurava também entre as outras donzelas que abrilhantavam a festa.
Depois de acomodarem as famílias
da tribo numa altura escolhida, onde se senhoreava uma grande planície que
se estendia de um lado e de outro do Uruguai, o morubixaba deu por prêmio da
primeira prova, a carreira, a mais forte de suas couraças de guerra, feita
de duros couros de anta, orlada de pelos de tucano e de vistosa plumagem de
papagaio.
Dos cinqüenta jovens guerreiros
que se sujeitaram à primeira prova foi Jaebé, era este o nome do filho do
velho caçador, que em segunda corrida com um rival ganhou o prêmio. Vestido
da esplendida couraça, foi festejado por todos.

Também na prova da natação, que
consistia em chegar primeiro à outra margem do rio, saiu vitorioso,
recebendo como prêmio um manto de peles de cisne, ornado ricamente de
topetes de cardeal e de peitos amarelos de tucano.

A terceira, foi a mais difícil
das provas, jejum de nove dias, sujeitaram-se oitos moços. Para não
enganarem a vigilância dos juízes, foram envolvidos em peles. Já no terceiro
dia, queixou-se Jaebé a seu pai, o velho caçador, e mais ainda no sexto dia,
mas o pai animava-o, que pouco faltava e convenceu o jovem a encolher-se e
ficar imóvel no seu couro. Os outros sete declaram-se vencidos neste dia.

Chegaram então o morubixaba e o
velho caçador e abriram o couro em que estava Jaebé.....e qual não seria a
surpresa que se apoderou de todos, quando viram que, ao contato do ar e da
luz, se diminuía, convertendo-se em pássaro e vestindo-se de plumas
encarnadas! E pouco a pouco transforma-se em um "hogaraitay" ou o João de
barro batendo asas, voava à próxima árvore, cantando: "Sou filho dos bosques
e canto o hino ao trabalho".

Diz a tradição que a noiva de
Jaebé, Ipona, ao vê-lo, transforma-se, se converte em uma ave semelhante
voando aos ramos daquela árvore para fazer-lhe companhia. Por isso é que
João de barro fabrica sua casa, como o homem, de barro e vive acompanhando o
pobre lavrador nas casas de campo, recordando-lhe nas harmoniosas cadências
que exala em dueto com sua companheira, que o trabalho na vida simples dos campos
tem um fundo de bem estar e de felicidade.