A LENDA DA IGREJA DAS DORES

 A Igreja de Nossa Senhora das Dores, da cidade de Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, começou a ser construída em 1833 e levou aproximadamente 97 anos para ser concluída. Sua fachada ostenta linhas arquitetônicas do barroco português associado ao estilo alemão.

O grande atraso que passou esta grandiosa obra, deve-se a uma lenda que nos fala sobre uma maldição que lhe foi lançada por um inocente mártir escravo.

O primeiro autor a fazer referências à lenda foi Afonso Morais, que a publicou em 1931, com o nome de "Torres Malditas". O escritor inicia seu texto, afirmando que ninguém melhor do que ele para falar sobre o fato, pois afirma que teve participação ativa no acontecimento. Segue dizendo que um grande amigo seu, o Rafael, apaixonou-se perdidamente por uma moça de nome Corina. E foi Corina, que em certa ocasião fez um pedido que não seria fácil de ser obtido, mas provaria toda a grandeza do amor que Rafael sentia por ela: o colar que ostentava a imagem de Nossa Senhora das Dores.

Rafael estarrecido falou-lhe:

-"Poderei te dar outro colar. Um que possas usas, pois o que me pedes é impossível!"

Corina acrescenta:

-"Nada é impossível nesta vida, ainda mais se o amor entra como causa. Faze a vontade à tua amada, faze! Eu me apaixonei por ti e pelo colar."

Rafael pensou, pensou e exclamou resoluto:

-"Sim, irei dá-lo para ti. Creio que és capaz de me fazer assassino. O amor te dá esse poder."

E foi assim, que o autor e seu amigo entraram furtivamente na Igreja e apossou-se do belo colar de brilhantes que adornava a imagem de Nossa Senhora das Dores. Tudo feito, logo Rafael ficou sabendo que a culpa pelo desaparecimento do colar recaiu sobre um pedreiro de nome José. Todos os incriminavam como ladrão e deveria ser enforcado. Desesperado, o rapaz resolveu que deveria se acusar, mas o amigo (autor) não permitiu.

 

José era um escravo, que foi cedido por seu senhor para ajudar na construção da igreja, que era dirigida pelos padres.

 

Em uma radiosa manhã livre de nuvens à sombra meditativa de uma árvore da Praça da Harmonia, uma corda foi estendida para o enforcamento do pedreiro José e também de um outro acusado de roubo e assassinato.

De repente, todos olharam para o lado da rua da praia: era o cortejo chegando. À frente os dois condenados, entre uma escolta. Logo atrás, vinha um padre com crucifixo em punho, acompanhado de um sacristão que fazia tilintar uma campainha.

O povo, que ali aglomerava-se, abriu alas e o cortejo foi avançando moroso, até chegar àquela árvore que desempenharia um papel tão triste. O cortejo então parou e o padre aproxima-se de José para dizer-lhe algumas palavras. Em seguida, o carrasco aproxima-se, passa um nó no pescoço do pedreiro e lhe é perguntado:

-"Sabes porque serás enforcado? És acusado de roubar o colar".

Foi dado então, ao condenado o direito das "últimas palavras" e esse falou:

-"Vou morrer porque sou escravo, mas sou inocente e a prova disso é que as torres da Igreja Nossa Senhora das Dores, hão de cair três vezes e nunca ficarão completamente prontas." E acabou enforcado, conforme mandava a lei da época.

Passados cinco meses do enforcamento do José, num belo entardecer, as duas torres, quase concluídas, escorregaram num fúlgido ocaso e como tontas de vertigem, caíram ao solo. Neste momento, as últimas palavras do escravo enforcado foram então lembradas.

A crença popular constituída de terrores ancestrais, impressionou-se profundamente. E, D. Pedro II, cônscio do fato, extinguiu a pena de morte em todo o Brasil, para que não se tirasse a vida de pessoas inocentes.

E, o Rafael? Pois é, esse sim, morreu com o sentimento de culpa e sem a sua amada Corina, pois o que ela almejava mesmo era a posse do colar, eis tudo!

 

Esta lenda nos dá a visão clara da discriminação racial que viveu o nosso negro, espremido nas mãos de seus dominadores.

Os negros foram trazidos para o Brasil, para preencher o papel de força de trabalho compulsório, necessário para produzir gêneros destinados ao mercado mundial. A estrutura de poder na grande lavoura do período colonial brasileiro, baseava-se na família de proprietários, da terra e dos escravos.

Entretanto, ser tratado como mercadoria, foi uma das menores violências perpetradas contra o negro. O que existiu durante o regime de escravatura foi a violência institucionalizada. No sistema escravista eram permitidos aos proprietários uma série de práticas de coação física para fazer com que o escravo "cumprisse a sua obrigação". A legislação era sempre genérica, buscando apenas coibir os "excessos", sem caracterizá-los devidamente, permitindo que o estabelecimento destes limites ficassem a critério dos próprios senhores ou, quando muito, de juízes venais e dependentes dos eventuais réus. Se até hoje, em nosso país, políticos corruptos e ricos não vão para a cadeia, imagine-se na época da escravidão...

Desprotegido, longe de sua terra natal ou já nascido cativo, o negro ficava sujeito às explosões de gênio de seus feitores e senhores às taras e aos sadismos, além de terem qualquer ato de protesto reprimido com violência.

 

A história de nossos negros, bem ao contrário do que alguns historiadores tentam afirmar, não teve nada de cordial. Vender a imagem de um povo pacífico e de uma história sem sangue, é uma boa tática para evitar eventuais manifestações dos oprimidos contra o estado atual da violência cotidiana, sob a alegação que não seria a atitude esperada de um cidadão brasileiro.

Afirmar que nossa história transcorreu sem violência é uma total inverdade, pois todos nós sabemos o tratamento que foi dado ao nosso negro durante a escravidão. Correntes, tronco, gargalheira, algemas, palmatória, peia, máscara, ferro para marcas, figuram em listas de castigos aplicados a escravos que foram classificados como instrumentos de suplício e aviltamento. Onde estava o caráter cordial do brasileiro quando açoitava freqüentemente o corpo suado do escravo que trabalhava de sol a sol para enriquecê-lo?

E, além disso, havia a pena de morte, como no caso do escravo José da nossa referida lenda, onde o escravo era enforcado por seu dono, ao cometer pequenos delitos. Tais sentenças, eram executadas sem direito de recurso ao Imperador que, como poder moderador da época, tinha o direito de perdoar ou moderar as sentenças. Foi somente a partir de 1850, quando a importação dos escravos foi impedida, que o enforcamento institucionalizado do negro foi proibido. Isso porque, com a carência de braços, qualquer morte passou a ser prejuízo.

Nesse tipo de sociedade não havia espaço para qualquer tipo de cordialidade espontânea. Mas, mesmo assim, humilhados e submetidos, agredidos e reduzidos a simples peça na complexa engrenagem da lavoura, muitos escravos lutaram contra sua condição, em momentos de silencioso ou altissonante heroísmo.

Texto pesquisado e desenvolvido por

ROSANE VOLPATTO

Lendas do Rio Grande do Sul - Dante de Laytano - Publicação Estadual de Folclore do Rio Grande do Sul; RJ; 1956

Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul - Antonio Augusto Fagundes; Martins Livreiro Editor

Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul Barbosa Lessa; Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda; SP