O JACARÉ E AS MULHERES BELICOSAS

As lendas ensinam que as histórias têm que ser guardadas no coração e mostram um outro jeito de pensar."

As mulheres de uma certa aldeia, em determinadas épocas, costumavam ir à lagoa onde vivia um solitário jacaré. Para maior comodidade, construíram ranchos e levavam utensílios de cozinha: panelas e outras vasilhas. Levavam também enfeites de penas e almíscar para esfregar no corpo.

 

Uma dessas mulheres enfeitava-se com todos estes atavios e ungia a sua pele com essências. Enquanto as outras pescavam e cozinhavam ou iam procurar frutos na floresta, ela permanecia sentada sobre as ervas, à beira da lagoa.

 

Nem bem as outras se afastavam, a jovem enfeitada gritava:

-“Jacaré, vem trazer peixe, matrinchão, curimatá, papa-terra e avoadeira!

 

O jacaré respondia:

-“Já vou!”

 

E lá vinha arrastando uma fieira de pescado. Chegando à beira da lagoa, deitava sobre a coxa da índia, para que ela fizesse cafuné e adormecia. Enquanto isso, as outras preparavam comida e depois do passeio levavam a seus homens apenas as cascas dos frutos. Mas a jovem toda enfeitada e cheirosa continuava a agradar o jacaré e passava a tarde fazendo amor com ele. Todos os dias acontecia um revezamento da índia que iria acariciar o jacaré.

Esta situação se prolongou por algum tempo, até que um dia os homens intrigados porque as mulheres só lhes traziam casca de frutos e estavam indiferentes a eles, resolveram investigar o que realmente estava acontecendo. Um deles mandou que o filho acompanhasse a mãe. Esta, porém, recusou-se a consentir e só depois de muitos pedidos permitiu que o filho a seguisse.

 

Quando o menino voltou, revelou aos homens o que tinha visto.

 

Daí a dois dias, estes se reuniram e foram, eles próprios, à lagoa, enquanto as mulheres tiveram que ficar na aldeia. Também os homens se esfregaram com almíscar e chamaram o jacaré. O bicho apareceu como de costume, com a fieira de de peixes, e deitou-se para dormir. Mas os homens o mataram com uma clava, atirando-o no mato.

 

Em seguida foram caçar marrecos e urubus e voltaram para casa com a preia. Gritaram zombeteiros para as mulheres:

-“Vós nos enganastes, agora podeis comer carne de urubu!”

 

No dia seguinte, lá foram as mulheres, mas o jacaré não apareceu. Começaram então a procurá-lo e o encontraram onde os homens o haviam deixado. Enfurecidas, correram para a aldeia, fizeram flechas e arcos e desafiaram os homens para a luta.

 

Os homens não levaram o desafio à sério e, para não ferir as mulheres, viraram as flechas com a ponta para trás, para não mate-las, só machucá-las. Mas as mulheres atiraram com a ponta para frente e mataram os homens, com exceção de alguns poucos, que fugiram.

 

As mulheres vingadas, em sinal de protesto pela morte do jacaré, amputaram um seio e, quando jogaram na água, eles deram origem aos botos cor-de-rosa.  

A supremacia física do homem sobre a mulher manifesta-se pela maneira de o homem externar seus ciúmes. De certo modo, os exemplos míticos das respectivas formas de comportamento revelam moral de dois pesos e duas medidas, concedendo direitos maiores ao homem que é mais forte. O mito do jacaré e as mulheres belicosas é um mito de rebelião contra esta supremacia masculina, envolvendo o jacaré como um símbolo análogo à serpente ou ao dragão, o poder do ventre. Nos mesmos moldes das Amazonas, a revolta pelo assassínio do jacaré leva-as à vingança.

 

O que a história nos conta é que antigamente, eram as mulheres que possuíam todo o poder, pois eram elas que tinham os filhos e, como o papel do homem não era bem reconhecido na fertilização, a crença era que as mulheres tinham um poder especial dado pela Deusa Mãe do Muiraquitã. Este poder especial se estendia à própria organização da sociedade onde cabia às mulheres o preparo dos alimentos, a organização da casa e o cuidado com a família. Enfim, tudo girava em torno das mulheres. E, mesmo após a sua submissão, um receio dos poderes ocultos que elas possuíam continuou existindo.

Este receio era observado nos xamãs, que com medo de perderem a capacidade de se comunicar com os espíritos, se abstinham de relações sexuais. A crença é que a fisiologia feminina está dotada de um poder místico de grande potência. Neste mundo dominado pelos homens, o único poder feminino (fertilidade) é considerado perigoso e maligno.

 

Mas a nossa lenda nos remete também, à idéia de como o ódio e a raiva podem ser criadores, se soubermos lidar com estes sentimentos. A raiva faz parte da força das mulheres. Não se deve desperdiçar a raiva e sim deve-se aprender a expressa-la, de modo que ela possa ser ouvida, aprendendo assim, a transformá-la em algo que nos fortaleça e nos dê energia.

 

Semelhantes à Deusa Esquimó Sedna, de cujos dedos arrancados surgiram os mamíferos marinhos,a amputação dos seios das mulheres indígenas, deram origem ao boto cor-de-rosa. Tal feito vem comprovar o grande poder da energia feminina que tudo gera, tudo cria, tudo transforma.

Todos nós somos vitimizados por algo, por instituições patriarcais, pela discriminação baseada na raça, no sexo, nas preferências sexuais, na religião e na cor. O que não se deve fazer é desperdiçar energia valiosa e tempo nos sentindo vítimas. Em vez de dissipar esta energia, abasteça-se dela e aventure-se na estrada das mudanças.

Concordando em gênero e número com Ivan Lins, vale a pena “Começar de novo!”

 Não deixe de tentar.

 

Texto pesquisado e desenvolvido por

Rosane Volpatto

Bibliografia:

Contribuições para a Etnologia do Brasil - Paul Erenreich; Revista do Museu Paulista, Nova Série, Vol II, 1948 pp. 83-84

Estórias e Lendas dos Índios - Hervert Baldus