A FILHA DA CHUVA

 

O indígena vive em paz e integrado com a Natureza (hoje já não são todos que dispõe deste privilégio!). Acreditam também que todas as plantas possuem alma e são símbolos da vida humana. Isso se explica, pelo seu modo de observação do universo, acentuadamente antropomorfo. Há inclusive tendências totêmicas, no sentido de existência de parentesco com determinadas plantas.

 

A Natureza para o índio, não é passiva, objetiva, neutra e muda, mas é um ente integrante de sua sociedade. Observem que a categoria que comanda as relações entre o homem e a Natureza é, para a modernidade ocidental, a da produção concebida como ato de subordinação da matéria ao desígnio humano.

 

Já para as sociedades indígenas da Amazônia, a categoria paradigmática deste contexto é a da reciprocidade, a da comunicação simbólica entre sujeitos que se interconstituem pelo mesmo ato de troca. Estes povos, portanto, vivem sob o signo de uma troca de propriedades simbólicas entre os humanos e os demais habitantes do Cosmo e não de uma produção de bens sociais a partir de uma matéria informe.

 

É importante entendermos esta concepção indígena, para podermos desvendar seus mitos e compreendermos a dimensão do que lhe é sagrado, bem diversa dos povos civilizados em que o sagrado se apartou da universalidade da Natureza.

 

Ilustrando o que lhes digo:

Na fase final da festa Bemb (Caiapós), em marcha triunfal, os homens arrastam uma enorme árvore pela aldeia e erguem-na no meio de uma grande praça redonda. Os índios chamam tal árvore de “wari”.

Indagados pelo sentido de tal cerimonial, um deles respondeu:

 

-“Aquilo que para vocês significa bandeira, para nós Caiapós, é a árvore, wari”.

 

Mas vamos então a nossa lenda:

 

Nos tempos muito antigos, um grupo de índios Caiapós estava em uma jornada pelas matas e campos.. Os jovens corriam na frente, para encontrar o caminho.

 

 

Um desses jovens afastou-se de seus companheiros para fazer uma pequena necessidade. Encontrou então uma moça, sentada na raiz de uma imensa árvore. Era a filha da chuva, Nyobog-ti, ou seja, “a grande luz”.

 

O índio apressou-se em voltar para seus irmãos e chamou-os para mostrar-lhes o seu achado. Eles haviam trazido uma grande cabaça e dentro dela colocaram a moça. Em seguida, fecharam-na cuidadosamente e amarraram a tampa com cordas de algodão. Foi deste modo, que conseguiram transportar a filha da chuva sem que alguém percebesse.

 

Ao chegarem em casa, os irmãos esconderam a cabaça, pois nem à mãe queriam dizer que haviam encontrado a moça.

 

Passaram-se muitas luas sem que a mãe desconfiasse de coisa alguma. Mas certo dia, os jovens saíram para caçar e a senhora ficou sozinha em casa. Foi aí então, que ela descobriu a grande cabaça debaixo do teto da choça, coberta com folhas de palmeiras.

 

Cheia de curiosidade, a mãe dos jovens índios, desatou as cordas e levantou a tampa. Qual não foi a sua surpresa quando, no interior da cabaça, viu a moça.

 

-“Levanta-te”, falou a senhora, “de modo que eu possa vê-la melhor”.

 

-“Não quero”, respondeu a filha da chuva, “tenho vergonha”.

 

-“Mas vergonha de que?” indaga a mãe.

 

-“Por nada”, replicou a moça.

 

-“Gostaria tanto de te ver!”, insistiu a senhora.

 

-“Não quero, não quero que me olhes” retrucou a filha da chuva.

 

 

Daí a mãe enfiou a mão na cabaça, pegou a moça pelo braço e puxou-a para fora.

 

-“Venha, não tenhas medo”, falou “pois vou cortar teu cabelo e pintar-se, para ficares bonita”.

 

A filha da chuva sentou na beirada do jirau e a mulher começou a cortar o seu cabelo, raspando-o das entradas até a risca. Em seguida pintou-a: primeiro com a cor de urucu, aplicando-lhe uma faixa larga de vermelho, bem vivo, atrás do rosto e em volta dos olhos. Também pintou de vermelho o corpo, os braços e as pernas. Com traços finos fez um motivo artístico, usando a cor preta, brilhante, do jenipapo. Pintou a moça do mesmo modo que as mulheres Caiapós se pintam até hoje.

 

 

Tão logo acabou o trabalho, seu marido voltou para casa e ao ver a moça sentada na beirada do jirau, perguntou:

 

-“Mulher, por que libertaste a filha da chuva?”

 

-“Ora, eu queria vê-la, mas ela estava do jeito que caiu do céu, nada bonita, por isso, raspei seu cabelo e pintei-a. Agora ele ficou bonita, igual a qualquer uma de nossas moças. Agora ela é nossa parente e ninguém pode bater nela ou mal”, respondeu a esposa.

 

E a filha da chuva ficou com eles por muitas e muitas luas, viveu na aldeia com as outras moças Caiapós. Mais tarde casou-se com um indígena e teve filhos.

 

Aconteceu, então, que, por bastante tempo, os homens não tiveram sorte nas caçadas e as mulheres encontraram poucos frutos silvestres. Nypbog-ti, seu marido e filhos, começaram a passar fome. Aí, a filha da chuva falou ao esposo:

 

-“Lá em cima, no Céu, onde estão meu pai e minhas irmãs, há muitas coisas gostosas. Lá crescem batata-doce, mandioca, macaxeira. Nas florestas há muita caça e também muitas tartarugas terrestres. Aliás, para comer, há de tudo que se possa imaginar”.

 

-“Então vá lá buscar algumas dessas coisas gostosas para termos o que comer”, propôs o marido.

 

No dia seguinte, bem cedo, ele partiu com Nyobog-ti. Deixaram a aldeia e foram para os campos. Lá, o marido, de braço forte, dobrou uma palmeira buriti, para que sua mulher sentasse na ponta da árvore. Aí, então, o índio soltou a palmeira, que voltou à sua posição normal com tanta velocidade e força que a mulher foi atirada ao ar. E a filha da chuva voou alto e sempre mais alto, até o Céu.

O marido foi deitar-se à sombra de uma palmeira para espera-la. Assim ficou até o meio-dia, quando o sol estava em posição vertical no Céu.

 

Daí, um pouco triste, falou para si mesmo:

 

-“Minha mulher me abandonou”. Quando estava se levantando para ir embora, ouviu atrás de si, uma voz:

 

-“Aqui estou de volta!”

 

O indígena olhou para trás e viu Nyobog-ti. Muito feliz, exclamou:

 

-“Olhe, aqui está minha bem-amada mulher, de volta! E quanta coisa trouxe: batata-doce, macaxeira, bolo de mandioca e banana.

 

No entanto, a mulher falou:

 

“Lá no Céu, de onde eu venho, onde moram meu pai, minha mãe e minhas irmãs, há mandioca e ainda muitas outras coisas boas para comer. Espere um pouco, eles virão nos visitar e trazer dessas coisas”.

 

Logo apareceram seu pai, a chuva, chamado Bebgorórotí, sua mãe e suas irmãs. Trazendo, como prometido, muitas coisas gostosas do Céu.

 

Bebgorórotí, dirigiu-se ao índio advertindo-o:

-“Jamais deve bater em minha filha. Agora vou voltar para o Céu. De lá sempre vejo minha filha e protejo-a”

 

A filha da chuva e seu esposo voltaram juntos dos campos para casa. Levaram para a aldeia dos Caiapós batata-doce, macaxeira, banana, bola de mandioca e ainda muitas outras coisas.

 

 

A MULHER FERTILIZADORA

 

 

Para os Caiapós existe uma identificação mítica da mulher como portadora da fertilidade, com outra fonte mítica de fecundidade, a da filha da chuva. Em sua qualidade de filha da chuva, ela está em íntima relação com a força cósmica, a chuva, que cai sobre a terra, fertilizando.

 

A água é a geratriz de todas as coisas. A chuva é o esperma celeste associado à lua, que ao tocar a terra tem o poder de fertilizá-la. Segundo o pensamento primitivo, era a lua a responsável pela chuva que cai sobre a terra.

 

Como a chuva,  a "filha da chuva", representando o princípio feminino, também caiu sobre a terra, a partir do mundo de cima. Ela escolhe viver entre os homens, mas não perde sua conexão com os deuses.

Esse casamento sagrado, do céu com a terra e os humanos, foi necessário e benéfico, pois trouxe fertilidade para as mulheres e boas safras para os índios.

 

Todo o modo de vida dos Caiapós, na qual a caça constitui a principal tarefa masculina, sugere, que nos tempos primitivos, a agricultura teria sido inventada pela mulher.

 

Quando a moça do mundo acima do teto do Céu é descoberta no interior da cabaça, pela mãe índia, ela fica com vergonha. No entanto, a mãe a pinta com jenipapo e urucu, tal qual o fazem as índios e corta seu cabelo. “Agora ela ficou bonita, como uma das nossas”, fala a mãe.

 

Por intermédio da realização cultural da pintura artística do corpo, um trabalho específico das mulheres, a moça se torna um membro da tribo e, conseqüentemente, um ser humano aparentado. Então, a mulher vinda do mundo acima da abóbada celeste, casa-se com um índio. É apenas desta forma, perfeitamente integrada na comunidade dos homens, que ela se torna benfeitora, heroína cultural.

 

Quando o marido e a família passam fome, ela fala:

-“Lá em cima, no Céu, há muita caça e muitas coisas gostosas...”

 

O Céu, portanto, é descrito como um lugar de fartura. A noção de um estado de felicidade no Céu é de certo modo a representação do Céu cristão.

 

 

A mulher celeste, transformada em ser humano, heroína cultural, traz do Céu as valiosas plantas úteis. A exemplo de como ela se casa com um homem na Terra, ela semeia as plantas do Céu, por ela própria representadas, depois de ter ensinado ao marido a fazer a primeira roçada.

Fazer roçada, na língua Caiapó, quer dizer “puru diri” = gerar a superfície da roça. Com o pau de cavar, a mulher abre a terra e nela desce as mais importantes plantas do bulbo do Céu. E a terra dá à luz, produzindo muitos frutos.

 

Para os Caiapós hodiernos, a roçada é tarefa masculina: o homem encarrega-se da derrubada das árvores, limpeza do mato, retirada e remoção das árvores gigantes, que ficaram incólumes. Também é o homem que se encarrega da queima dos troncos e galhos para a limpeza da roça. Mas o plantio e os cuidados das plantas, continuam sendo tarefa eminentemente feminina.

 

Texto pesquisado e desenvolvido por

 

ROSANE VOLPATTO

 

 

 

 

 

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