ERESHKIGAL,
A DEUSA DO SUBTERRÂNEO

Fui até lá de livre vontade.
Fui até lá com meu vestido mais lindo, minhas
jóias mais preciosas e minha coroa de Rainha do
Céu.
No Inferno, diante de cada um dos sete portões,
fui desnuda sete vezes de tudo o que pensava
ser, até que fiquei nua daquilo que de fato sou.
Então eu a vi:
Ela era enorme e escura e peluda e cheirava mal.
Tinha cabeça de leoa, patas de leoa e devorava
tudo que estivesse à sua frente.
Ereshkigal, minha irmã
Ela é tudo o que eu não sou
Tudo o que eu escondi
Tudo o que eu enterrei
Ela é o que eu neguei
Ereshkigal, minha irmã,
Ereshkigal, minha sombra,
Ereshkigal, meu eu.
Ereshkigal
é a Deusa Suméria, Rainha dos Mortos e do
Mundo Subterrâneo. Seu nome significa
"Senhora da Grande Habitação
Inferior". Entretanto antes de ser relegada
ao "kur" (palavra que significa Mundo
Inferior), era uma Deusa dos grãos e morava na
parte superior da terra. Caracterizava portanto,
o crescimento dos cereais. Como Deusa dos grãos,
era conhecida como Ninlil, sendo esposa de Enlil,
um Deus Sol de segunda ordem. Como mulher deste
Deus, foi violentada por marido diversas vezes,
oculto em vários disfarces. Mas acabou sendo
castigado pela violência perpetrada e mandado
para o mundo inferior, onde toma o nome de
Gugalana. A Deusa, entretanto, amava muito seu
marido e seguiu-o, tornando-se então,
Ereshkigal.
Sua
violentação é análoga com a história de
Perséfone, mas mostra a potência primitiva e
paradoxal de forma mais crua, havendo em
Ereshkigal muita das Gógonas e da Deméter
Negra: o poder, o terror, as sanguessugas sobre
a cabeça, o olhar terrível congelando a vida,
a ligação íntima com o não-se e o destino. A
Deusa contém e personifica as regras do mundo
inferior, ao sentar-se frente aos sete juízes
para receber aqueles que vêm até ela através
dos sete portões de sua casa de lápis-lazúli.
Em alguns mitos seu consorte era Ninazu (deus da
cura) e em outros, Nergal (deus da peste, da
guerra e da morte).
A
violentação da Deusa, estabelece ainda, o domínio
do masculino sobre a vida em sociedade,
relegando o poder feminino e a fertilidade ao
mundo inferior.
Em
uma das primeiras violentações
Ninlil-Ereshkigal por Enlil, nasceu Nana-Sin, o
Deus Lua, nascido no mundo inferior antes de
levantar-se para iluminar o Céu e medir o tempo
com seus ciclos. Nana-Sin é o pai de Inanna,
sendo portanto, Ereshkigal sua avó nessa
genealogia. Ereshkigal tornou-se um símbolo da
morte aterrorizada para o mundo patriarcal e foi
banida para o subterrâneo. Como Kali, Ereshkigal, através do tempo e do sofrimento,
dos quais, entretanto, jorra avida. Ela
simboliza o abismo, que é a fonte e o fim, a
base de todos os seres.
Os
domínios de Ereshkigal representam uma única
certeza: de que todos nós um dia morreremos.
Mas devido esta certeza, esse reino é a
manifestação do desconhecido, onde a vida
consciente se encontra em estado de
adormecimento.
O
vizir de Ereshkigal chamava-se Namtar,
"destino". O reino da Deusa tinha
legalidade própria, à qual os Deuses da Suméria
se curvavam. É a lei do grande subterrâneo,
lei da realidade, das coisas como elas são, uma
lei natural pré-ética e freqüentemente
aterrorizadora, que sempre precede os
julgamentos do superergo patriarcal e daquilo
que gostaríamos que acontecesse. Mas Ereshkigal
nunca aflorava em seu aspecto terrível. Quando
os Deuses realizavam suas festas, pediam que
alguém fosse buscar sua comida. Mas ela não é
antagônica ao masculino, pois vivia rodeada de
juízes, consortes e criados são homens e ela
gera e dá à luz a meninos. Portanto,
contrariando tudo o que já foi escrito, esta
Deusa nos sugere que a consciência das camadas
profundas do psique não é uma adversária da
consciência patriarcal.

INANNA
E ERESHKIGAL

Ereshkigal
era irmã-avó de Inanna, que desce até seu
território para assistir os funerais Gugalana
(marido de Ereshkigal). Mas ela se enfurece e
exige que a Deusa do Mundo Superior seja tratada
de acordo com as leis e ritos destinados a todos
que entram em seu reino: deverá ser trazida até
sua presença nua e curvada.
Seu
vizir acolhe suas órdens e a cada uma das setes
portas de entrada, ele remova uma das vestes de
Inanna. Agachada e nua, como os sumérios eram
colocados em seus túmulos, ela é julgada por
sete juízes. Em seguida, Ereshkigal mata-a e
enfia seu corpo em um poste, onde se transforma
em uma carne esverdeada pela putrefação. Só
depois de três dias é que sua assistente
Ninshubur coloca em execução suas instruções
para resgatá-la. Mas é somente Enki, o Deus
das águas e da sabedoria que se dispõe a ajudá-la.
Resgata a Deusa se utilizando para isso dois
carpidores que ele modela com a sujeira que se
acumulou debaixo de sua unha. Esses entram no
Mundo Inferior sem serem notados, levando o
alimento e a água da vida que Enki lhes dera.
Mas só asseguraram a libertação de Inanna
quando compadeceram-se de Ereshkigal, que estava
gemendo de dores de parto. Extremamente grata
pela empatia dos carpidores, entrega o corpo de
Inanna.
Depois
Inanna precisará enviar alguém ao Mundo
Inferior para ocupar seu lugar. O escolhido será
Dumuzi, seu consorte que teria usurpado seu
trono. Mas ele será protegido por sua irmã
Gehstinana. Inanna decide então que ambos devem
dividir a condenação, e passar seis meses cada
um no mundo subterrâneo.
Esta
história nos serve de modelo cósmico, sazonal,
transformativo e psicológico. Este é o filme
cuja projeção cura as feridas de todas nós
mulheres que crescemos sob o patriarcalismo e
lutamos com problemas semelhantes.

ERESHKIGAL
COMO ARQUÉTIPO

Ereshkigal
é a Deusa que enfurece se for desrespeitada,
mas ela não constrói um sistema de ataque, nem
seus próprios limites. Vemos sua projeção na
figura da mãe que se torna inimiga, se houver
recusa no reconhecimento de sua sabedoria. Esta
atitude equivale a anular a sua própria origem,
pois Ereshkigal é a avó do Sol e das Estrelas.
De seu ventre surgem as luzes celestes e os
filhos da peste e da morte. É a fonte da consciência
trazida pelas luzes orientadas do céu e pelas
dores e medos mortais.
Há
afeto, energia e legitimidade em Ereshkigal, mas
há também seus olhos de morte.
Arquetipicamente, esses olhos de morte são
implacáveis e profundos, enfocando uma
objetividade imediata que considera as pretensões,
os ideiais e mesmo a individualidade e o
relacionamento como coisas irrelevantes. Eles
também encerram e possibilitam o mistério de
uma percepção radicalmente diferente e pré-cultural.
Como os olhos das caveiras em volta da casa da
bruxa e deusa russa da natureza, a Baba Yaga,
eles percebem com a objetividade própria da
natureza e de nossos sonhos, escavando alma a
dentro, para encontrar a verdade nua, e ver a
realidade por trás de sua miríade de formas,
ilusões e defesas.

Quando
não reverenciadas, as forças de Ereshkigal são
sentidas como depressão e uma abissal agonia de
desamparo e futilidade, desejo inaceitável e
energia destrutivo-transformadora, autonomia
inaceitável, que desintegram, resolvem e
devoram o senso individual de capacidade e
valor. Uma mulher sob o domínio de Ereshkigal,
acaba cortada de seus afetos primais, perdendo a
consciencia em relação a eles. Pode sentir-se
presa em uma estase sem fim, incapaz de
mover-se, sentindo o desespero pesado e o vazio
de quem é violentada pelo seu "animus".
Ereshkigal
não aceita ser reverenciada pelos modos
convencionais, pois ela exige a morte, a destruição
completa das diferenças, a transformação
total. Somente um ato de rendição completa e
voluntária poderá transformar o lado sombrio
desta Deusa Escura.
Só
quando formos reduzidas à dor de uma profunda
depressão que adormece os sentidos e nos reduz
ao caos é que nos encontraremos com a Deusa
Ereshkigal. O contato com ela enraíza a mulher
e aglutina sua potencialidade para confrontar o
masculino e o patriarcado de igual para igual.
As descidas mais profundas levam à reorganização
e transformação radicais da personalidade
consciente.

Todas
as mulheres devem ter a ousadia de saltar para a
escuridão. No alento frio do domínio
espiritual, podemos experimentar nossa própria
frieza, à fim de nos livrarmos da compulsão de
relacionamentos que nos escravizam. Também para
engrentarmos uma vida sobrecarregada e ir contra
ela, a morte surge como um valor supremo.
Nós
mulheres, temos uma longa história que está se
tornando consciente. Não há modelos que se
adaptem perfeitamente à nossa situação atual,
mas por meio das lendas antigas, saberemos quais
as forças deveremos servir. Está ainda para
ser vivido ou até escrito a forma pela qual
alcançaremos o equilíbrio e desenvolvimento
individual, enquanto descemos e subimos, para
novamente iniciarmos um novo ciclo.
Somos
todos nós um pequeninho fragmento da história,
mas contemos a promessa dela inteira. Como
viajantes de um tempo que enterrou nossas
Deusas, nossa tarefa de individualização é
uma nota que se destaca como uma grande canção
que vem sido cantada desde os primórdios.

RITUAL
Coloque
uma vela preta no ponto sul de seu altar, uma
vela branca ao norte e um cálice no centro.
Trace
o círculo.
Invocação:
Acenda
a vela preta e diga:
Oh
Grande Deusa Ereshkiga,
Junte-se
a mim neste local sagrado.
Ajude-me
a crescer,
Para
que eu possa fazer diferença neste mundo.
Ensina-me
a responder com amor e bondade,
Toda
a crueldade que me é dirigida.
Passe
o seu atame três vezes através o fogo da vela
preta e diga:
Oh
Deusa do Subterrâneo,
Com
o fogo desta vela preta,
Ajuda-me
a queimar e afastar de minha vida
Toda
a obscuridade.
Visualize
todas as coisas ruins sairem de você e
fundirem-se com a chama da vela. Depois apage-a.
Tome
um outro gole do cálice e diga:
Que
esta bebida da purificação,
Me
deixe livre de qualquer mal.
Agora
acenda a vela branca. Olhe para sua chama,
observe sua cor demoradamente e diga
Ereshkigal,
busco minha renovação interior.
Ajuda-me
a curar as feridas deixadas
Do
mundo que agora saiu de mim.
Faça
com que volte a rejuvenescer meu interior,
Para
que eu possa ter mais compaixão e paciência
Com
aqueles que tentam me prejudicar.
Reflita
sobre o processo desta renovação. Sinta que
cada parte de seu corpo se torna mais forte,
mais saudável, mais puro.
Diga
então:
Oh
Grande Deusa Ereshkigal,
Ajuda-me
a levar este crescimento e renovação
Comigo
para minha vida cotidiana.
Apague
a vela branca.
Abra
o círculo
Texto
pesquisado e desenvolvido por
Rosane
Volpatto

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