
Obter proteção
divina para os assuntos terrestres, individuais, do faraó e do povo egípcio, era
um ideal de todo o soberano do Vale do Nilo.
Para a mentalidade
e concepção de poder egípcias, é o afastamento ou desobediência em relação às
divindades que provoca, por exemplo, as reveses político-militares. É a sua
proteção que garante e sela a vitória. A vitória manifesta essa proteção e, por
sua vez, essa proteção revela a correção da atuação real. O faraó era um mero
servidor dos deuses, sendo estes quem, em última instância, governavam e
dirigiam os assuntos humanos.
NEKHEBET

O nome Nekhebet
significa "Aquela de Nekheb". Como a própria nomenclatura hieroglífica deixa
perceber pelo determinativo utilizado, trata-se de uma Deusa-abutre, nesse caso
do Alto Egito, com o principal centro de culto em Nekheb, moderna El-Kab.
Divindade protetora
do Alto Egito e da realeza, surge representada na arte egípcia como uma mulher
com cabeça de abutre ou, mais freqüentemente, como um abutre branco usando a
coroa "hedjet", do Alto Egito.
Residente familiar
dos céus egípcios, o abutre, ave provida de poderosas garras, pescoço descarnado
e recurvado, olho agressivo, longo e adunco bico, forneceu a representação alada
ideal para uma Deusa que se considerava a "Senhora do Céu Meridional". Assim,
iconograficamente, a Deusa é freqüentemente representada de asas abertas, sinal
de proteção (do rei /ou do Egito), agarrando símbolos de eternidade com suas
fortes garras. É freqüente vê-la representada em cenas guerreiras segurando nas
asas os cetros "uas" e "nekhakha", bem como o anel mágico "chen".
Além de "Senhora do
Céu" e "Regente das Duas Terras", a Deusa-abutre Nekhebet era ainda conhecida
por muitos outros epítetos, com base nos seus abtributos, funções ou
representações: ela é "A Coroa Branca" (alusão direta à coroa com que surge
coroada), simbólica coroa dos soberanos do Alto Egito, no sentido em que o Alto
Egito; é "Senhora de Per-Uer", sendo Per-Uer, o santuário por excelência do
Reino do Sul, de Hieracômpolis; quando representada com o cetro "nekhakha" e/oi
com o anel real é "A Dama do Medo); numa direta referência à sua principal área
de adoração, é "A de Nekheb", cidade na margem oriental do Nilo.
Nos "Textos das
Pirâmides", a mãe do faraó é designada como a "Grande Vaca Branca que habita em
Nekheb que possui seios pendurados". Trata-se de uma referência a Nekhebet como
Deusa-Mãe, para a qual a imagética da vaca é um recurso vulgar no pensamento
egípcio. Como mãe, amamentava a criança real, por vezes o próprio faraó adulto.
Desde os tempos
mais remotos, Nekhebet era considerada protetora dos nascimentos, em particular
do nascimento real. Muitos são os desenhos que a apresentam no papel de
enfermeira/parteira protetora e zeladora do nascimento e da vida do faraó. Daí
porque os gregos a identificavam com a sua Deusa Eléusia, protetora dos
nascimentos (cujos mistérios celebrados em Creta e na Grécia se aproximavam dos
da Deusa egípcia), e dessem a Nekheb o nome de Eileithyáspolis. Esse seu
atributo levou também que fosse identificada, a partir da XVIII dinastia, a
outra Deusa egípcia, Heket, a Deusa com cabeça de rã de Antinoé que facilitava
os partos.
Nekhebet foi
absorvida pela mitologia solar e pela mitologia osiríaca. Segundo algumas
versões da mitologia solar, era considerada a mãe do Sol. Em outros relatos, é
vista como filha de Rá e de seu Olho Direito. Para a mitologia osiríaca é esposa
de Khentamentiu. Esse parentesco com "O Primeiro dos Ocidentais" deriva do fato
de os cadáveres dos mais desfavorecidos serem lançados para o deserto, onde
serviam de repasto aos abutres. Ainda segundo o culto de Osíris, na sua dimensão
de fertilidade, era considerada esposa de Hapi, o Nilo, a quem abria as portas
para deixar correr desde o Oceano Primitivo. Como divindade universal e
criadora, é assimilada a Hator, a Mut e a Nut.
Como Deusa tutelar
do Alto Egito e padroeira da realeza, a atividade da Deusa-abutre deve ser
sempre vista em parceria e contraponto com a Deusa Uadjit, a Deusa-cobra,
tutelar do Baixo Egito e também padroeira da realeza.

Surgindo ambas na
fronte real, formando uma divisa heráldica de primeira grandeza e eficácia no
seio da simbólica egípcia, essas Deusas defendem o monarca, asseguravam a sua
prteção, aleitando-o com seu leite celeste (Nekhebet), conservando, assim, a sua
divindade e, quais mães, ameaçando e/ou agredindo todos os seus eventuais
opositores ou agressores (Fig. 237).
É de referir ainda,
que inúmeras Deusas e Rainhas são representadas com um toucador em forma de
abutre, que segura o anel sagrado, prefigurando a Deusa Nekhebet.
Forças animadoras
do Alto e Baixo Egito, Nekhebet e Uadjit formam um par indissociável na
emergência da realeza unificada egípcia, em 3.000 a. C. com Narmer (fig. 239).

O "serekh,
representação estilizada de um palácio ou templo, que surge na célebre Paleta de
Narmer, pode muito bem representar o templo da Deusa Nekhebet, em El-Kab, antiga
Hieracômpolis.

O protocolo ou
titulatura real, nekhebet, compunha-se de cinco nomes, sendo o segundo
precisamente o "Nome das Duas Senhoras" Nebti, istoé, Nekhebet, a Deusa-abutre,
divindade tutelar do Alto Egito, e Uadjit, a Deusa-cobra, divindade tutelar do
Baixo Egito.
O Egito era,
portanto, um "país duplo" e o faraó um rei "das Duas Terras". Ele é "Aquele das
Duas Damas" na medida em que uniu um território que estava separado e reina com
a concordância e a proteção das divindades de ambas áreas unificadas.

UADJIT (Wadjyt, Wadjit,
Uto, Uatchet, Edjo, Buto)

Venerada
essencialmente em Per Uadjit, "A Residência/Morada de Uadjit", a que os gregos
chamavam Buto, "A Rsidência da Deusa Uto", no Baixo Egito (atual Tell el-Farain),
Uadjit é outra das divindades tutelares do Egito e da monarquia na sua forma de
Deusa-cobra.
O seu nome (por
vezes, também referido como Uto ou Edjo) significa "A Verde" ou "O Papiro
Colorido", numa dupla referência à cor da serpente de que retira a forma e à
planta de papiro do Delta, a qual, segundo os "Textos das Pirâmides", criou.
Preservadora da
autoridade real sobre o Norte do Egito, desde tempos pré-históricos, o mais
antigo santuário da região Delta, o Per-Nu, estava sob sua proteção, surge
figurada com a coroa "decheret", também chamada net, a coroa vermelha do Baixo
Egito, e/ou colocada sobre os papiros, símbolos heráldicos do Delta. Nesse
aspecto é chamada "Dama do Poder". A sua posição erguida sugere o ataque mortal
que desfere contra qualquer inimigo do faraó e confere-lhe o nome de "Dama das
Chamas".
O seu aspecto
agressivo e defensor da realeza aparece ainda consubstanciado numa representação
com corpo de mulher e a cabeça de leoa. Se o uraeus é o seu animal, enquanto
leoa denota os aspectos ferozes da divindade. É aliás, como uraeus como
personificação do calor escaldante e mortífero do Sol (assimilada pelo Olho
Esquerdo de Rá) e como elemento ígneo pela sua picada, que surge na coroa dos
soberanos egípcios, qual diadema, sendo devido à sua forma leonina que foi
considerada na mitologia como mãe do deus Nefertum.
Das suas
representações mais comuns registram-se ainda aquelas em que surge como serpente
alada, como cobra enrolada dentro de um cesto sobre plantas de papiro e usando
na cabeça a coroa vermelha do Baixo Egito.
Assim como Nekhebet
é a "Senhora do Céu Meridional", Uadjit, em contraponto com a sua parceira, é a
"Senhora do Céu Setentrional", sendo considerada, nessa condição, uma forma de
Hator, ela também uma Senhora do Céu, quel "Morada de Hórus", o falcão. Uadjit
assume esse título enquanto serpente alada, prestando-se, efetivamente, a
representações aladas, qual ave que deambula pelos céus.
Uma reflexão
posterior a fará intervir na lenda do nascimento do jovem Hórus, tendo-o
recolhido na ilha flutuante de Khemmis, no Delta, e amamentado. Os cuidados
maternais para com o filho de Ísis, o herdeiro legítimo do trono do Egito,
subtraindo-o aos ataques de Seth e alimentando-o com seu leite repleto de
energia cósmica, justificaram a sua identificação com Ísis e levaram os gregos a
identificarem-na com Latona ou Leto, mãe de Apolo.
Essa participação
de Uadjit na lenda isíaca pode ter resultado da proximidade entre Khemmis e Buto.
Aliás, Heródoto faz eco dessa lenda e salienta justamente o fator proximidade
geográfica. Diz ele:
"A ilha a que se
chama Khemmis: ela está situada junto do templo de Buto e é, segundo os
egípcios, uma ilha flutuante". (História II, 156).
Uadjit é a parceira
norte de Nekhebet e, surgem ambas no título Nebti do protocolo real: "As Duas
Senhoras". Desde Narmer que o rei egípcio é "Aquele das Duas Senhoras", ou seja,
está sob a tutela de Nekhebet, o abutre branco do Alto Egito e de Uadjit, a
cobra verde do Baixo Egito.
Em vários
documentos reais, Nekhebet e Uadjit surgem lado a lado e embelezam a cabeça do
faraó com o objetivo de o protegerem de seus inimigos. Muitas rainhas e alguns
deuses solares são também ornados com o uraeus. Quando, em várias
representações, o uraeus Uadjit rodeia o disco solar de Rá, torna-se agente de
aniquilação de Rá, especialmente das serpentes hostis com que este se depara na
jornada noturna pelo Mundo Inferior e, como elemento independente e autônomo,
instituindo-se em "Dama do Céu" e rainha de todos os deuses.
No entanto, é de
crer que, em tempos recuados da história egípcia, a força maléfica e destruidora
da serpente se pudesse voltar contra o próprio faraó, sendo a sua mordedura o
instrumento mortal usado por Anupu para pôr temo à vida terrestre do faraó.
Nesse aspecto, Uadjit era filha de ANUPU ou Anúbis. (Guardião das necrópoles).

Texto pesquisado e
desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO
Bibliografia:
As Divindades
Egípcias - José das Candeias Sales
La religión del
Antiguo Egipto - Stephen Quirke
La Diosa - Shahrukh
Husain
Os Egípcios -
Cyril Aldred
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