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O CERRO DO
JARAU
Era um dia...,
um dia, um gaúcho pobre, Blau, de nome, guasca de bom porte, mas que só tinha de
seu um cavalo gordo, o facão afiado e as estradas reais, estava conchavado de
posteiro, ali na entrada do rincão; e nesse dia andava campeando um boi barroso.
E no tranquito andava, olhando; olhando para o fundo das sangas, para o alto das
coxilhas, ao comprido das canhadas; talvez deitado estivesse entre as carquejas
- a carqueja é sinal de campo bom -, por isso o campeiro às vezes alçava-se nos
estribos e, de mão em pala sobre os olhos, firmava mais a vista em torno; mas o
boi barroso, crioulo daquela querência, não aparecia; e Blau ia campeando,
campeando...
Campeando e cantando:
“Meu bonito boi barroso.
Que eu já contava perdido.
Deixando o rastro na areia
Foi logo reconhecido.
“Montei no cavalo escuro
E trabalhei logo de espora;
E gritei - aperta, gente,
Que o meu boi se vai embora! -
“No cruzar uma picada,
Meu cavalo relinchou.
Dei de rédea para a esquerda,
E o meu boi me atropelou!
“Nos tentos levava um laço
De vinte e cinco rodilhas,
Pra laçar o boi barroso
Lá no alto das coxilhas!
“Mas no mato carrasquento
Onde o boi ‘stava embretado,
Não quis usar o meu laço,
Pra não vê-lo retalhado.
“E mandei fazer um laço
Da casca do jacaré,
Pra laçar meu boi barroso
Num redomão pangaré.
“E mandei fazer um laço
Do couro da jacutinga,
Pra laçar meu boi barroso
Lá no passo da restinga.
“E mandei fazer um laço
Do couro da capivara
Pra laçar meu boi barroso
Nem que fosse a meia cara;
“Este era um laço de sorte,
Pois quebrou do boi a balda”...
No tranquito ia, cantando, e pensando na sua pobreza, no atraso das suas cousas.
No atraso das suas cousas, desde o dia em que topou - cara a cara! - com o
Caipora num campestre da serra grande, pra lá, muito longe, no Botucaraí...
A lua ia recém saindo...; e foi à boquinha da noite...
Hora de agouro, pois então!...
Gaúcho valente que era dantes, ainda era valente, agora; mas, quando cruzava o
facão com qualquer paisano, o ferro da sua mão ia mermando e o do contrário o
lanhava...
Domador destorcido e parador, que por só pabulagem gostava de paletear, ainda
era domador, agora; mas, quando gineteava mais folheiro, às vezes, num redepente,
era volteado...
De mão feliz para plantar, que lhe não chochava semente nem muda de raiz se
perdia, ainda era plantador, agora; mas, quando a semeadura ia apontando da
terra, dava a praga em toda, tanta, que benzedura não vencia...; e o arvoredo do
seu plantio crescia entecado e mal floria, e quando dava fruta, era mixe e era
azeda...
E assim, por esse teor, as cousas corriam-lhe mal; e pensando nelas o gaúcho
pobre, Blau, de nome, ia, ao tranquito, campeando, sem topar com boi barroso.
De repente, na volta duma reboleira, bem na beirada dum boqueirão, sofrenou o
tostado...: ali em frente, quieto e manso, estava um vulto, de face tristonha e
mui branca.
Aquele vulto de face branca... aquela face tristonha!...
Já ouvira falar dele, sim, não uma nem duas, mas muitas vezes...; e de homens
que o procuravam, de todas as pintas, vindos de longe, num propósito, para
endrôminas de encantamentos..., conversas que se falavam baixinho, como num
medo; pro caso, os que podiam contar não contavam, porque uns, desandavam
patetados e vagavam por aí, sem dizer cousa com cousa, e outros calavam-se muito
bem calados, talvez por juramento dado...
Aquele vulto era o santão da salamanca do cerro.
Blau Nunes sofrenou o cavalo.
Correu-lhe um arrepio no corpo, mas era tarde para recuar: um homem é para outro
homem!...
E como era ele
- Na terra dos espanhóis, do outro lado do mar, havia uma cidade chamada -
Salamanca - onde viveram os mouros, que eram mestres nas artes de magia; e era
numa furna escura que eles guardavam o condão mágico, por causa da luz branca do
sol, que diz que desmancha a força da bruxaria...
O cordão estava no regaço duma fada velha, que era uma princesa moça, encantada,
e bonita, bonita como só ela!...
É certo: não tomou tenência que a teiniaguá era mulher... Ouve, paisano.
No costado da cidade onde eu vivia havia uma lagoa, larga e funda, com uma ilha
de palmital, no meio. Havia uma lagoa...
A minha cabeça foi banhada na água benta da pia, mas nela entraram soberbos
pensamentos maus... O meu peito foi ungido com os santos óleos, mas nele entrou
a doçura que tanto amarga, do pecado...
A minha boca provou do sal piedoso... e nela entrou a frescura que requeima, dos
beijos da tentadora...
Mas, é que assim era o fado...; tempo e homem virão para me libertar, quebrando
o encantamento que me amarra; duzentos anos hão de findar; eu esperarei no
entanto, vivendo na minha tristeza seca, tristeza de arrependido que não
chora...
Tudo o que volteia no ar tem seu dia de aquietar-se no chão...
Era eu que cuidava dos altares e ajudava a missa dos santos padres da igreja de
S. Tomé, do lado ao poente do grande rio Uruguai. Sabia bem acender os círios,
feitos com a cera virgem das abelheiras da serra; e bem balançar o turíbulo,
fazendo ondear a fumaça cheirosa do rito; e bem tocar a santos, na quina do
altar, dois degraus abaixo, à direita do padre; e dizia as palavras do missal; e
nos dias de festa sabia repicar o sino; e bater as horas, e dobrar a finados...
Eu era o sacristão.
Um dia, na hora do mormaço, todo o povo estava nas sombras, sesteando; nem voz
grossa de homem, nem cantoria das moças, nem choro de crianças: tudo sesteava. O
sol faiscava nos pedregulhos lustrosos, e a luz parecia que tremia, peneirada no
ar parado, sem uma viração.
Foi nessa hora que eu saí da igreja, pela portinha da sacristia, levando no
corpo a frescura da sombra benta, levando na roupa o cheiro da fumaça piedosa. E
saí sem pensar em nada, nem de bem nem de mal; fui andando, como levado...
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
A água da lagoa borbulhava toda, numa fervura, ronquejando tal e qual como uma
marmita no borralho. Por certo que lá embaixo, dentro da terra, é que estaria o
braseiro que levantava aquela fervura que cozinhava os juncos e as traíras e
pelava as pernas dos socós e espantava todos os mais bichos barulhentos daquelas
águas...
Eu vi, vi o milagre de ferver, toda uma lagoa..., ferver, sem fogo que se visse!
A mão direita, pelo Costume, andou para fazer o “Pelo-Sinal”... e parou, pesada
como chumbo; quis rezar um “Credo”, e a lembrança dele recuou; e voltar, correr
e mostrar o Santíssimo... e tanger o sino em dobre... e chamar o padre superior,
tudo para esconjurar aquela obra do inferno... e nada fiz... nada fiz, sem força
na vontade, nada fiz... nada fiz, sem governo no corpo!...
E fui andando, como levado, para de mais perto ver, e não perder de ver o
espanto...
Porém logo outra força acalmou tudo; apenas a água fumegante continuou
retorcendo os lodos remexidos, onde boiava toda uma mortandade dos viventes que
morrem sem gritar.
Era o fim de um lançante comprido, estrada batida e limpa, de todos os dias as
mulheres irem para a lavagem; e quando eu estava na beira da água, vendo o que
estava vendo, então rompeu dela um clarão, maior que o da luz a pino do dia,
clarão vermelho, como dum sol morrente, e que luzia desde o fundão da lagoa e
varava a água barrenta...
E veio crescendo para a barranca, e saiu e tomou terra, e sem medo e sem ameaça
veio andando para mim a sempre escapada maravilha... maravilha que os que nunca
viram juravam sempre ser - verdade - e que eu, que estava vendo, ainda jurava
ser - mentira! -
Era a teiniaguá, de cabeça de pedra luzente, por sem dúvida; dela já tinha
ouvido ao padre superior a história contada dum encontradiço que quase cegou de
teimar em agarrá-la.
Entrecerrei os olhos, coando a vista, cautelando o perigo; mas a teiniaguá
veio-se me chegando, deixando no chão duro um rastro d’água que escorria e logo
secava, do seu corpinho verde de lagartixa engraçada e buliçosa...
Lembrei-me - como quem olha dentro duma cerração -, lembrei-me do que corria na
voz da gente sobre o entanguimento que traspassa o nosso corpo na hora do
encantamento: é como o azeite fino num couro ressequido...
Mas não perdi de todo a retentiva: pois que da água saía, é que na água viveria.
Ali perto, entre os capins, vi uma guampa e foi o quanto agarrei dela e enchi-a
na lagoa, ainda escaldando, e frenteei a teiniaguá que, da vereda que levava,
entreparou-se, tremente, firmando nas patinhas da frente, a cabeço cristalina,
como curiosa, faiscando...
De olhos apertados, piscando, para não me atordoar dum golpe de cegueira,
assentei no chão a guampa e preparando o bote, num repente, entre susto e
coragem, segurei a teiniaguá e meti-a para dentro dela!
Neste passo senti o coração como que martelar-me no peito e a cabeça sonando
como um sino de catedral...
Corri para o meu quarto, na casa-grande dos santos padres. Entrei pelo
cemitério, por detrás da igreja, e desatinando, derrubei cruzes, pisoteei ramos,
calquei sepulturas!...
Todo o povo sesteava; por isso ninguém viu.
Fechei a guampa dentro da canastra e fiquei estatelado, pensando.
Pelo falar do padre superior em bem sabia que quem prendesse a teiniaguá ficava
sendo o homem mais rico do mundo; mais rico que o Papa de Roma, e o imperador
Carlos Magno e o rei da Trebizonda e os Cavaleiros da Tábula...
Nos livros que eu lia estes todos eram os mais ricos que se conhecia.
E eu, agora!...
E não pensei mais dentro da minha cabeça, não; era uma cousa nova e esquisita:
eu via, com os olhos, os pensamentos diante deles, como se fossem cousas que se
pudesse tantear com as mãos...
E foram se escancarando portas de castelos e palácios, onde eu entrava e saía,
subia e descia escadarias largas, chegava às janelas, arredava reposteiros,
deitava-me em camas grandes, de pés torneados, esbarrava-me em trastes que nunca
tinha visto e servia-me em baixelas estranhas, que eu não sabia para o que
prestavam...
E foram-se estendendo e alargando campos sem fim, perdendo o verde no azul das
distâncias, e ainda lidando com outras estâncias, que também eram minhas e todas
cheias de gadaria, rebanhos e manadas...
- Eu sou a princesa moura encantada, trazida de outras terras por sobre um mar
que os meus nunca sulcaram... Vim, e Anhangá-pitã transformou-me em teiniaguá de
cabeça luminosa, que outros chamam o - carbúnculo - e temem e desejam, porque eu
sou a rosa dos tesouros escondidos dentro da casca do mundo...
Muitos têm me procurado com o peito somente cheio de torpeza, e eu lhes hei
escapado das mãos ambicioneiras e dos olhos cobiçosos, relampejando desdenhosa o
lume vermelho da minha cabeça transparente...
Tu, não; tu não me procuraste ganoso... e eu subi ao teu encontro; e me bem
trataste pondo água na guampa e trazendo mel fino para o meu sustento.
Se quiseres, tu, todas as riquezas que eu sei, entrarei de novo na guampa e irás
andando e me levarás onde eu te encaminhar, e serás senhor do muito; do mais, do
tudo!...
A teiniaguá que sabe dos tesouros, sou eu, mas sou também princesa moura...
Sou jovem... sou formosa..., o meu corpo é rijo e não tocado!...
E estava escrito que tu serias o meu par.
Serás o meu par... se a cruz do teu rosário me não esconjurar... Senão, serás
ligado ao meu flanco, para quando quebrado o encantamento, do sangue de nós
ambos nascer uma nova gente, guapa e sábia, que nunca mais será vencida, porque
terá todas as riquezas que eu sei e as que tu lhe carrearás por via dessas!...
Se a cruz do teu rosário não me esconjurar...
Sobre a cabeça da moura amarelejava nesse instante o crescente dos infiéis...
E foi se adelgaçando
no silêncio a cadência embalante da fala induzidora...
A cruz do meu rosário...
Fui passando as contas, apressado e atrevido, começando na primeira... e quando
tenteei a última... e que entre as duas os meus dedos, formigando, deram com a
Cruz do Salvador... fui levantando o Crucificado... bem em frente da bruxa, em
salvatério... na altura do seu coração... na altura da sua garganta... da sua
boca... na altura dos...
E aí parou, porque olhos de amor, tão soberanos e cativos, em mil vidas de homem
outros se não viram!...
Parou... e a minha alma de cristão foi saindo de mim, como o sumo se aparta do
bagaço, com o aroma sai da flor que vai apodrecendo...
Cada noite
era meu ninho o regaço da moura; mas, quando batia a alva, ela desaparecia ante
a minha face cavada de olheiras...
E crivado de pecados mortais, no adjutório da missa trocava os amém e todo me
estortegava e doía quando o padre lançava a bênção sobre a gente ajoelhada, que
rezava para alívio dos seus pobres pecados, que nem pecados eram, comparados com
os meus...
Uma noite ela quis misturar o mel do seu sustento com o vinho do santo
sacrifício; e eu fui, busquei no altar o copo de ouro consagrado, todo lavorado
de palmas e resplendores; e trouxe-o, transbordante, transbordando...
De boca para boca, por lábios incendiados o passamos...
E embebedados caímos, abraçados.
Sol nado, despertei;
estava cercado pelos santos padres.
Eu, descomposto; no chão o copo, entornado; sobre o oratório, desdobrada, uma
charpa de seda, lavrada de bordaduras exóticas, onde sobressaía uma meia-lua
prendendo entre as aspas uma estrela... E acharam na canastra a guampa e no
porongo o mel... e até no ar farejaram cheiro mulherengo... Nem tanto era
preciso para ser logo jungido em manilhas de ferro.
Afrontei o arrocho da tortura, entre ossos e carnes amachucadas e unhas e
cabelos repuxadas. Dentro das paredes do segredo não havia gritos nem palavras
grossas; os padres remordiam a minha alma, prometendo o inferno eterno e
espremiam o meu arquejo decifrando uma confissão...; mas a minha boca não
falou... não falou por senha firme da vontade, que não me palpitava confessar
quem era ela e que era linda...
E raivado entre dois amargos desesperos não atinava sair deles: se das riquezas,
que eu queria só pra mim, se do seu amor, que eu não queria que fosse senão meu,
inteiro e todo!
Mas por senha da vontade a boca não falou.
Fui sentenciado a morrer pela morte do garrote, que é infame; condenado fui por
ter dado passo errado com bicho imundo, que era bicho e mulher moura, falsa,
sedutora e feiticeira.
No adro e no largo da igreja o povo ajoelhado batia nos peitos, clamando a morte
do meu corpo e a misericórdia para a minha alma.
O sino começou dobrando a finados. Trouxeram-me em braços, entre alabardas e
lanças, e um cortejo moveu-se, compassando a gente d’armas, os santos padres, o
carrasco e o povaréu.
Dobrando a finados... dobrando a finados...
Era por mim.
E quando, sem mais esperança nos homens nem no socorro do céu, chorei uma
lágrima de adeus à teiniaguá encantada, dentro do meu sofrer floreteou uma
réstia de saudade do seu cativo e soberano amor..., como em rocha dura
serpenteia às vezes um fio de ouro alastrado e firme, como uma raiz que não quer
morrer!...
E aquela saudade parece que saiu para fora do meu peito, subiu aos olhos feita
em lágrima e ponteou para algum rumo, ao encontro doutra saudade rastreada sem
engano...; parece, porque nesse momento um ventarrão estourou sobre as águas da
lagoa e a terra tremeu, sacudida, tanto, de as árvores desprenderem os seus
frutos, de os animais estanquearem-se, medrosos, e de os homens caírem de cóc’ras,
agüentando as armas, outros, de bruços, tateando o chão...
E nas correntezas sem corpo, da ventania, redemoinhavam em chusma vozes
guaranis, esbravejando se soltasse o padecente...
Para trás do cortejo, desfiando o som entre as poeiras grossas e folhas secas
levantadas, continuava o sino dobrando a finados... dobrando a finados!...
Os santos padres, pasmados mas sisudos, rezavam encomendando a minha alma: em
roda, boquejando, chinas, piás, índios velhos, soldados de couraça e lança, e o
alcaide, vestido de samarra amarela com dois leões vermelhos e a coroa d’el-rei
brilhando em canutilho de ouro...
A lágrima do adeus ficou suspensa, como uma cortina que embacia o claro ver: e o
palmital da lagoa, o boleado das coxilhas, o recorte da serra, tudo isto, que
era grande e sozinho cada um enchia e sobrava para os olhos limpos dum homem,
tudo isso eu enxergava junto, empastalhado e pouco, espelhando-se na lágrima
suspensa, que se encrespava e adelgaçava, fazendo franjas entre as pestanas
balançantes dos meus olhos de condenado sem perdão...
A menos de braça, estava o carrasco atento no garrote!
Mas os olhos do meu pensamento, altanados e livres, esses, esses viam o corpo
bonito, lindo, belo da princesa moura, e recreavam-se na luz cegante da cabeça
encantada da teiniaguá, onde reinavam os olhos dela, olhos de amor, tão
soberanos e cativos como em mil vidas de homem outros se não viram!...
E por certo por essa força que nos ligava sem ser vista, como naquele dia em que
o povo sesteava e também nada viu.., por força dessa força, quanto mais os
padres e alguazis ordenavam que eu morresse, mais pelo meu livramento forcejava
o irado peito da encantada, não sei se de amor perdida pelo homem, se de orgulho
perverso do perjuro, se da esperança de um dia ser humana...
O fogo dos borralhos foi-se alteando em labaredas e saindo pela quincha dos
ranchos, sem queimá-los...; as crianças de peito soltaram palavras feitas, como
gente grande...; e bandadas de urubus apareceram e começaram a contradançar tão
baixo, que se lhes ouvia o esfregar das penas contra o vento..., a contradançar,
afiados para uma carniça que ainda não havia porém que havia de haver...
Mas os santos padres alinharam-se na sombra do Santíssimo e borrifaram de água
benta o povo amedrontado; e seguiram, como num propósito, encomendando a minha
alma; o alcaide levantou o pendão real e o carrasco varejou-me sobre o garrote,
infâmia de minha morte, por ter tido amores com mulher moura, falsa, sedutora e
feiticeira...
Rolou, então, sobre o vento e nele foi a lágrima do adeus, que a saudade
destilara.
Deu logo a lagoa um ronco bruto, nunca ouvido, tão dilatado e monstruoso...: e
rasgou-se cerce em um sangão medonho, entre largo e fundo... e lá no abismo, na
caixa por onde ia já correndo, em borbotão, a água lamenta sujando as barrancas
novas, lá, eu vi e todos viram a teiniaguá de cabeça de pedra transparente,
fogachando luminosa como nunca, a teiniaguá correr, estrombando os barrocais,
até rasgar, romper, arruir a boca do sangão na alta barranca do Uruguai, onde a
correnteza em marcha despencou-se, espadanando em espumarada escura, como caudal
de chuvas tormentosas!
A gente levantou pro céu um vozear de lástimas e choros e gemidos.
- Que a Missão de S. Tomé ia perecer... e desabar a igreja... a terra expulsar
os mortos do cemitério... que as crianças inocentes iam perder a graça do
batismo... e as mães secar o leite... e as roças o plantio, os homens a
coragem...
Depois um grande silêncio balançou no ar, como esperando...
Mas um milagre se fez: o Santíssimo, de si próprio perpassou a altura das
cousas, e lá em cima, cortou no ar turvado a Cruz Bendita!... O padre superior
tremeu como em terçã e tartamudo e trôpego marchou para o povoado: os acólitos
seguiram, e o alcaide, os soldados, o carrasco e a indiada toda desandou, como
em procissão, emparvados, num assombro, e sem ter mais do que tremer, porque
ventos, urubus e estrondos se humilharam, fenecendo, dominados!...
Fiquei sozinho, abandonado, e no mesmo lugar e mesmo ferros posto.
Fiquei sozinho, ouvindo com os ouvidos da minha cabeça as ladainhas que iam
minguando, em retirada... mas também ouvindo com os ouvidos do pensamento o
chamado carinhoso da teiniaguá; os olhos do meu rosto viam a consolação da graça
de Maria Puríssima que se alonjava... mas os olhos do pensamento viam a tentação
do riso mimoso da teiniaguá; o nariz do meu rosto tomava o faro do incenso que
fugia, ardendo e perfumando as santidades... mas o faro do pensamento sorvia a
essência das flores do mel fino de que a teiniaguá tanto gostava; a língua da
minha boca estava seca, de agonia, dura, de terror, amarga, de doença... mas a
língua do pensamento saboreava os beijos da teiniaguá, doces e macios, frescos e
sumarentos como polpa de guabiju colhido ao nascer do sol; o tato das minhas
mãos tocava manilhas de ferro, que me prendiam por braços e pernas... mas o tato
do pensamento roçava sôfrego pelo corpo da encantada, torneado e rijo, que se
encolhia em ânsias, arrepiado como um lombo de jaguar no cio, que se estendia
planchado como um corpo de cascavel em fúria...
E tanto como o povo ia entrando na cidade, ia eu chegando à barranca do Uruguai;
tanto como as gentes, lá, iam acabando as orações para alcançar a clemência
divina, ia eu começando o meu fadário, todo dado à teiniaguá, que me enfeitiçou
de amor, pelo seu amor de princesa moura, pelo seu amor de mulher, que vale mais
que destino de homem!...
Sem peso de dores nos ossos e nas carnes, sem peso de ferros no corpo, sem peso
de remorsos na alma passei o rio para o lado do Nascente. A teiniaguá fechou os
tesouros da outra banda e juntos fizemos então o caminho para o Cerro do Jarau,
que ficou sendo o paiol das riquezas de todas as salamancas dos outros lugares.
Para memória do dia tão espantoso lá, ficou o sangão rasgado na baixada da
cidade de Santo Tomé, desde o tempo antigo das Missões.
Faz duzentos anos que aqui estou; aprendi sabedorias árabes e tenho tornado
contentes alguns raros homens que bem sabem que a alma é um peso entre o mandar
e o ser mandado...
Nunca mais dormi; nunca mais nem fome, nem sede, nem dor, nem riso...
Passeio no palácio maravilhoso, dentro deste Cerro do Jarau, ando sem parar e
sem cansaço; piso com pés vagarosos, piso torrões de ouro em pó, que se desfazem
como terra fofa; o areão dos jardins, que calco, enjoado, é todo feito de pedras
verdes e amarelas e escarlates, azuis, rosadas, violetas.., e quando a encantada
passa todas incendeiam-se num íris de cores rebrilhantes, como se cada uma fosse
uma brasa viva faiscando sem a mais leve cinza...; há poços largos que estão
atulhados de doblões e de onças e peças de jóias e armaduras, tudo ouro maciço
do Peru e do México e das Minas Gerais, tudo cunhado com os troféus dos senhores
reis de Portugal e de Castela e Aragão...
E eu olho para tudo, enfarado de ter tanto e de não poder gozar nada entre os
homens, como quando era como eles e como eles gemia necessidades e cuspia
invejas, tendo horas de bom coração por dias de maldade e sempre aborrecimento
do que possuía, ambicionando o que não possuía...
O encantamento que me aprisiona consente que eu acompanhe os homens de alma
forte e coração sereno que quiserem contratar a sorte nesta salamanca que eu
tornei famosa, do Jarau.
Muitos têm vindo.., e têm saído piorados, para lá longe irem morrer do medo aqui
pegado, ou andarem pelos povoados assustando as gentes, loucos, ou pelos campos
fazendo vida com os bichos brutos...
Poucos toparam a parada... ah!... mas esses que toparam, tiveram o que pediram,
que a rosa dos tesouros, a moura encantada não desmente o que eu prometo, nem
retoma o que dá!
E todos os que chegam deixam um resgate de si próprios para o nosso livramento
um dia..
Mas todos os que vieram são altaneiros e vieram arrastados pela ânsia da cobiça
ou dos vícios, ou dos ódios: tu foste o único que veio sem pensar e o único que
me saudou como filho de Deus...
Foste o primeiro, até agora; quando terceira saudação de cristão bafejar estas
alturas, o encantamento cessará, porque eu estou arrependido... e como Pedro
Apóstolo que três vezes negou Cristo foi perdoado, eu estou arrependido e serei
perdoado.
Está escrito que a salvação há de vir assim; e por bem de mim, quando cessar o
meu cessará também o encantamento teiniaguá: e quando isso se der a salamanca
desaparecerá, e. todas as riquezas, todas as pedras finas, todas as peças
cunhadas, todos os sortilégios, todos os filtros para amar por força... para
matar... para vencer.., tudo, tudo, tudo se virará em fumaça que há de sair pelo
cabeço roto do cerro, espalhada na rosa dos ventos pela rosa dos tesouros...
Tu me saudaste - o primeiro tu! - saudaste-me como cristão.
Pois bem:
alma forte e coração sereno!... Quem isso tem, entra na salamanca, toca o condão
mágico e escolhe do quando quer...
Alma forte e coração sereno! A fuma escura está lá: entra! Entra! Lá dentro
sopra um vento quente que apaga qualquer torcida de candeia... e tramado nele
corre outro vento frio, frio.., que corta como serrilha de geada.
Não há ninguém lá dentro... mas bem que se escuta voz de gente, vozes que
falam... falam, mas não se entende o que dizem, porque são línguas atoradas que
falam, são os escravos da princesa moura, os espíritos da teiniaguá... Não há
ninguém... não se vê ninguém: mas há mãos que batem, como convidando, no ombro
do que entra firme, e que empurram, como ainda ameaçando, o que recua com
medo...
Alma forte e coração sereno! Se entrares assim, se te portares lá dentro assim,
podes então querer e serás servido!
Mas, governa o pensamento e segura a língua: o pensamento dos homens é que os
levanta acima do mundo, e a sua língua é que os amesquinha...
Alma forte, coração sereno!... Vai!
Blau, o guasca,
apeou-se; mancou o flete e por de seguro ainda pelo cabresto prendeu-o a um
galho de cambuim que verga sem quebrar-se; rodou as esporas para o peito do pé;
aprumou de bom jeito o facão; santiguou-se, e seguiu...
Calado fez; calado entrou.
O sacristão levantou-se e o seu corpo desfez-se em sombra na sombra da reboleira.
O silêncio que então se desdobrou era como o vôo parado das corujas: metia
medo...
E logo cancheava erva nos meus ervais, cerrados e altos como mato virgem...
E atulhava de planta colhida - milho, feijão, mandioca - os meus paiós.
E detrás das minhas camas, em todos os quartos dos meus palácios, amontoava
surrões de ouro em pó e pilhotes de barras de prata; dependuradas na galhação de
cem cabeças de cervos, tinha bolsas de couro e de veludo, atochadas de
diamantes, brancos como gotas d’água filtrada em pedra, que os meus escravos -
saídos mil, chegados dez -, tinham ido catar nas profundas do sertão, muito para
lá duma cachoeira grande, em meia-lua, chamada de Iguaçu, muito pra lá doutra
cachoeira grande, de sete saltos, chamada de Iguaíra...
Tudo isto eu media e pesava e contava, até cair de cansaço; e mal que respirava
um descanso, de novamente, de novamente pegava a contar, a pesar, a medir...
Tudo isto eu podia ter - e tinha, de meu, tinha! -, porque era o dono de
teiniaguá, que estava preso dentro da guampa, fechada na canastra forrada de
couro cru, tauxiada de cobre, dobradiças de bronze!...
Aqui. ouvi o sino da torre badalando para a oração da meia-tarde...
Pela primeira vez não fui eu que toquei; seria um dos padres, na minha falta
Todo o povo sesteava, por isso ninguém viu.
Voltei a mim. Lembrei-me de que o animaizinho precisava alimento.
Tranquei portas e janelas e saí para buscar um porongo de mel de lexiguana, por
ser o mais fino.
E fui; melei; e voltei.
Abri sutil a porta e tornei a fechá-la ficando no escuro.
E quando descerrei a janela e andei para a canastra a tirar a guampa e libertar
a teiniaguá para comer o mel, quando ia fazer isso, os pés se me enraizaram, os
sentidos do rosto se arriscaram e o coração mermou no compassar o sangue!...
Bonita, linda, bela, na minha frente estava uma moça!...
Que disse:
Num mês de quaresma os mouros escarneceram muito do jejum dos batizados, e logo
perderam uma batalha muito pelejada; e vencidos foram obrigados a ajoelharem-se
ao pé da Cruz Bendita... e a baterem nos peitos, pedindo perdão...
Então, depois, alguns, fingidos de cristãos, passaram o mar e vieram dar nestas
terras sossegadas, procurando riquezas, ouro, prata, pedras finas, gomas
cheirosas... riquezas para levantar de novo o seu poder e alçar de novo a
Meia-Lua sobre a Estrela de Belém...
E para segurança das suas traças trouxeram escondida a fada velha, que era a sua
formosa princesa moça...
E devia ter mesmo muita força o condão, porque nem os navios se afundaram, nem
os frades de bordo desconfiaram, nem os próprios santos que vinham, não
sentiram...
Nem admira, porque o condão das mouras encantadas sempre aplastou a alma dos
frades e não se importa com os santos do altar, porque esses são só imagens...
Assim bateram nas praias da gente pampiana os tais mouros e mais outros
espanhóis renegados. E como eles eram, todos, de alma condenada, mal puseram pé
em terra, logo na meia-noite da primeira sexta-feira foram visitados pelo mesmo
Diabo deles, que neste lado do mundo era chamado de Anhangá-pitã e mui
respeitado. Então, mouros e renegados disseram ao que vinham; e Anhangá-pitã
folgou muito; folgou, porque a gente nativa daquelas campanhas e a destas serras
era gente sem cobiça de riquezas, que só comia a caça, o peixe, a fruta e as
raízes que Tupã despejava sem conta, para todos, das suas mãos sempre abertas e
fazedoras.
Por isso Anhangá-pitã folgou, porque assim minava para o peito dos inocentes as
maldades encobertas que aqueles chegados traziam...; e pois, escutando o que
eles ambicionavam para vencer a Cruz com a força do Crescente, o maldoso pegou
do condão mágico - que navegara em navio bento e entre frades rezadores e santos
milagrosos -, esfregou-o no suor do seu corpo e virou-o em pedra transparente; e
lançando o bafo queimante do seu peito sobre a farda moura, demudou-a em
teiniaguá, sem cabeça. E por cabeça encravou então no novo corpo da encantada a
pedra, aquela, que era o condão, aquele.
E como já era sobre a madrugada, no crescimento da primeira luz do dia, do sol
vermelho que ia querendo romper dos confins por sobre o mar, por isso a cabeça
de pedra transparente ficou vermelha como brasa e tão brilhante que olhos de
gente vivente não podiam parar nela, ficando encandeados, quase cegos!...
E desfez-se a companha até o dia da peleja da nova batalha. E chamaram -
salamanca - à furna desse encontro; e o nome ficou pras furnas todas, em
lembrança da cidade dos mestres mágicos.
Levantou-se um ventarrão de tormenta e Anhangá-pitã, trazendo num bocó a
teiniaguá, montou nele, de salto, e veio correndo sobre a correnteza do Uruguai,
por léguas e léguas, até as suas nascentes, entre serranias macotas.
Depois, desceu, sempre com ela; em sete noites de sexta-feira ensinou-lhe a
vaqueanagem de todas as furnas recamadas de tesouros escondidos... escondidos
pelos cauílas, perdidos para os medrosos e achadios de valentes... E a mais
desses, muitos outros tesouros que a terra esconde e que só os olhos dos zaoris
podem vispar...
Então Anhangá-pitã, cansado; pegou num cochilo pesado, esperando o cardume das
desgraças novas, que deviam pegar pra sempre...
Só não tomou tenência que a teiniaguá era mulher...
Aqui está tudo o que eu sei, que a minha avó charrua contava à minha mãe, e que
ela já ouviu, como cousa velha, contar por outros, que, esses, viram!...
E Blau Nunes bateu o chapéu para o alto da cabeça, deu um safanão no cinto,
aprumando o facão...; foi parando o gesto e ficou-se olhando, sem mira, para
muito longe, para onde a vista não chegava mas onde o sonho acordado que havia
nos seus olhos chegava de sobra e ainda passava...ainda passava, porque o sonho
não tem lindeiros nem tapumes...
Falou então o vulto de face branca e tristonha; falou em voz macia. E disse
assim:
Blau Nunes foi andando.
Entrou na boca da toca apenas aí clareada e isso pouco, por causa da enrediça da
ramaria que se cruzava nela; pra o fundo era tudo escuro...
Andou mais, num corredor dumas braças; mais, ainda; sete corredores nasciam
deste.
Blau Nunes foi andando.
Enveredou por um deles; fez voltas e contravoltas, subiu, desceu. Sempre escuro.
Sempre silêncio.
Mãos de gente, sem gente que ele visse, batiam-lhe no ombro.
Numa cruzada de carreiros sentiu ruído de ferros que se chocavam, tinir de
muitas espadas, seu conhecido.
Por então o escuro ia já mudando num luzir de vagalume.
Grupos de sombras com feitio de homens peleavam de morte; nem pragas nem fuzilar
d’olhos raivosos, porém furiosos eram os golpes que elas iam talhando umas nas
outras, no silêncio.
Blau teve um relance de parada, mas atentou logo no dizer do vulto de face
branca e tristonha - Alma forte, coração sereno...
E meteu o peito por entre o espinheiro das espadas, sentiu o corte delas, o fino
das pontas, o redondo dos corpos... mas passou, sem nem olhar aos lados, num
entono, escutando porém choros e gemidos dos peleadores.
Mãos mais leves bateram-lhe no ombro, como carinhosas e satisfeitas.
Outro mais ruído nenhum ouvia ele no ar quieto da furna que o rangido dos
cabrestilhos das suas esporas.
Blau Nunes foi andando.
Andando numa luz macia, que não dava sombra. Enredada como os caminhos dum cupim
era a furna, dando corredores sem conta, a todos os rumos; e ao desembocar do em
que vinha, Justo num cotovelo dele, saltaram-lhe aos quatro lados jaguares e
pumas, de goela aberta e bafo quente, patas levantadas mostrando as unhas, a
cola mosqueando numa fúria...
E ele meteu o peito e passou, sentindo a cerda dura das feras roçarem-lhe o
corpo; passou sem pressa nem vagar, escutando os urros que pra trás iam ficando
e morrendo sem eco...
As mãos, de braços que ele não via, em corpos que não sentia, mas que, certo, o
ladeavam, as mãos iam-lhe sempre afagando os ombros, sem bem o empurrar, mas
atirando-o para adiante... adiante...
A luz ia na mesma, cor da de vaga-lume, esverdeada e amarela...
Blau Nunes foi andando.
Agora era um lançante e ao fim dele parou num redondel topetado de ossamentas de
criaturas. Esqueletos, de pé, encostados uns nos outros, muitos, derreados, como
numa preguiça; pelo chão caídas, partes deles, despencadas; caveiras soltas,
dentes branqueando, tampos de cabeças, buracos de olhos; pernas e pé em passo de
dança, alcatras e costelas meneando-se num vagar compassado, outras em
saracoteio...
Aí o seu braço direito quase moveu-se acima, como para fazer o sinal da cruz;...
porém - alma forte, coração sereno!
- meteu o peito e passou entre as ossadas, sentindo o bafio que elas soltavam
das suas juntas bolorentas.
As mãos, aquelas, sempre brandas, afagavam-lhe outra vez os ombros...
Blau Nunes foi andando.
O chão ia alteando-se, numa trepada forte que ele venceu sem aumentar a
respiração; e num desvão, a modo dum forno, teve de passar por uma como porta
dele, e aí dentro era um jogo de línguas de fogo, vermelho e forte, como atiçado
com lenha de nhanduvai; e repuxos d’água, saídos das paredes, batiam nele e
referviam, chiando, fazendo vapor; um ventarrão rondava ali dentro, enovelando
águas e fogos, que era uma temeridade cortar aquele turbilhão...
Outra vez ele meteu o peito e passou, sentindo o mormaço das labaredas.
As mãos do ar mais o palmeavam nos ombros, como querendo dizer - muito bem! -
Blau Nunes foi andando.
Já tinha perdido a conta do tempo e do rumo que trazia; sentia no silêncio como
que um peso de arrobas; a claridade mortiça, porem, já se lhe assentara nos
olhos e tanto, que viu adiante, em sua frente e caminho, um corpo enroscado,
sarapintado e grosso, batendo no chão uns chocalhos, grandes como ovos de
téu-téu.
Era a boicininga, guarda desta passagem, que levantava a cabeça flechosa,
lanceando o ar com a língua de cabelos preta, firmando no vivente a escama dos
olhos, luzindo, preto, como botões de veludo...
Das duas presas recurvas, grandes como as aspas dum tourito de sobreano, pingava
uma goma escura, que era a peçonha sobrante por um muito jejum de mortandade, lá
fora...
A boicininga - a cascavel amaldiçoada - toda se meneava, chocalhando os guizos,
como por aviso, fueirando o ar com a língua, como por prova...
Uma serenada de suor minou na testa do paisano... porém ele meteu o peito e
passou, vendo, sem olhar, a boicininga altear-se e descair, chata e tremente...
e passou, ouvindo o chocalho da que não perdoa, o silbido da que não esquece...
E logo então, que era este o quinto passo da valentia que vencera sem temer - de
alma forte e coração sereno - logo então as mãos voantes anediaram-lhe o cabelo,
palmearam-lhe mais chegadas os ombros.
Blau Nunes foi andando.
Desembocou num campestre, de gramado fofo, que tinha um cheiro doce que ele não
conhecia; em toda a volta árvores enfloradas e estadeando frutos; veadinhos
mansos; capororocas e outro muito bicharedo, que recreava os olhos; e listando a
meio o campestre, brotado duma roca coberta de samambaias, um olho-d’água, que
saía em toalha e logo corria em riachinho, pipocando o quanto-quanto sobre areão
solto, palhetado de malacachetas brancas, como uma farinha de prata...
E logo uma ronda de moças - cada qual que mais cativa! - uma ronda alegre saiu
dentre o arvoredo, a cercá-lo, a seduzi-lo, a ele Blau, gaúcho pobre, que só
mulheres de anáguas resvalonas conhecia...
Vestiam-se umas em frouxo trançado de flores, outras de fios de contas, outras
na própria cabeleira solta...; estas chegavam-lhe à boca caramujos
estrambóticos, cheios de bebida recendente e fumegando entre vidros frios, como
de geada; dançavam outras num requebro marcado como por música... outras lá
acenavam-lhe para a lindeza dos seus corpos, atirando no chão esteiras macias,
num convite aberto e ardiloso...
Porém ele meteu o peito e passou, com as fontes golpeando, por motivo do ar
malicioso que o seu bofe respirava...
Blau Nunes foi andando.
Entrou no arvoredo e foi logo rodeado por uma tropa de anões, cambaios e
cabeçudos, cada qual melhor para galhofa, e todos em piruetas e mesuras,
fandangueiros e volantins, pulando como aranhões, armando lutas, fazendo caretas
impossíveis para rostos de gente...
Porém o paisano meteu o peito neles e passou, sem nem sequer um ar de riso no
canto dos olhos...
E com este, que era o último, contou os sete passos das provas.
E logo então, aqui, surdiu-lhe em frente o vulto de face tristonha e branca;
que, certo, lhe andara nas pisadas, de companheiro - sem corpo - e sem nunca lhe
valer nos apuros do caminho; e tomou-lhe a mão.
E Blau Nunes foi seguindo.
Por detrás de um cortinado como de escamas de peixe-dourado, havia um socavão
reluzente. E sentada numa banqueta transparente, fogueando cores como as do
arco-íris, estava numa velha, muito velha, carquincha e curvada, e como tremendo
de caduca.
E segurava nas mãos uma varinha branca, que ela revirava e tangia, e atava em
nós que se desfaziam, laçadas que se deslaçavam e torcidas que se destorciam,
ficando sempre linheira.
- Cunhã, disse o vulto, o paisano quer!
- Tu, vieste; tu, chegaste; pede, tu, pois! respondeu a velha.
E moveu e ergueu o corpo magro, dando estalos nas juntas e levantou a varinha
para o ar: logo o condão coriscou por sobre ela uma chuva de raios, mais que
como num temporal desfeito das nuvens carregadas cairia. E disse:
- Por sete provas que passaste, sete escolhas dar-te-ei... Paisano, escolhe!
Para ganhar a parada em qualquer jogo;... de naipes, que as mãos ajeitam, de
dados, que a sorte revira, de cavalos, que se cotejam, do osso, que se sopesa,
da rifa... queres?
- Não! disse Blau, e todo o seu parecer foi se mudando num semblante como de
sonâmbulo, que vê o que os outros não vêem.., como os gatos, que acompanham com
os olhos cousas que passam no ar e ninguém vê...
- Para tocar a viola e cantar... amarrando nas cordas dela o coração das
mulheres que te escutarem..., e que hão de sonhar contigo, e ao teu chamado irão
- obedientes, como aves varadas pelo olhar das cobras -, deitar-se entregues ao
dispor dos teus beijos, ao apartar dos teus braços, ao resfolegar dos teus
desejos... queres?
- Não! respondeu a boca, por mandado só do ouvido...
- Para conhecer as ervas, as raízes, os sucos das plantas e assim poderes curar
os males dos que tu estimares ou desfazer a saúde dos que aborreceres;... e
saber simpatias fortes para dar sonhos ou loucura, para tirar a fome, relaxar o
sangue, e gretar a pele e espumar os ossos,... ou para ligar apartados, achar
cousas perdidas, descobrir invejas...; queres?
- Não!
- Para não errar golpes - de tiro, lança ou faca - em teu inimigo, mesmo no
escuro ou na distância, parado ou correndo, destro ou prevenido, mais forte que
tu ou astucioso...; queres?
- Não!
- Para seres mandão no teu distrito e que todos te obedeçam sem resmungos;...
seres língua com os estrangeiros e que todos te entendam;... queres?
- Não!
- Para seres ricaço de campo e gado e manadas de todo o pêlo;.., queres?
- Para fazeres pinturas em tela, versos harmoniosos, novelas de sofrimentos,
autos de chocarrice, músicas de consolar, lavores no ouro, figuras no
mármore;... queres?
- Não!
- Pois que em sete poderes te não fartas, nada te darei, porque do que te foi
prometido nada quiseste. Vai-te!
Blau nem se moveu; e, carpindo dentro em si a própria rudeza, pensou no que
queria dizer e não podia e que era assim:
- Teiniaguá encantada! Eu te queria a ti, porque tu és tudo!... És tudo o que eu
não sei o que é, porém que atino que existe fora de mim, em volta de mim,
superior a mim... Eu te queria a ti, teiniaguá encantada!...
Mas uma escuridão fechada, como nem noite a mais escura dá parelha, caiu sobre o
silêncio que se fez, e uma força torceu o paisano.
Blau Nunes arrastou um passo e outro e terceiro; e desandou caminho; e quanto
ele andara em voltas e contravoltas, em subidas e descidas, tanto em direitura
foi bater na boca da furna por onde havia entrado, sem engano.
E viu atado e quieto o seu cavalo; em roda as mesmas restingas, ao longe os
mesmos descampados mosqueados de pontas de gado, a um lado o encordoado das
coxilhas, a outro, numa aberta entre matos um claro prateado, que era água do
arroio.
Memorou o que tinha acabado de ver e de ouvir e de responder; dormido, não
tinha, nem susto lhe tirara o entendimento.
E penso que tendo tido oferta de muito não lograra nada por querer tudo;... e
num arranco de raiva cega decidiu outra investida.
Voltou-se para entrar de novo... mas bateu com peito na parede dura do cerro.
Terra maciça, mato cerrado, capins, limos... e nenhuma fresta, nem brecha nem
buraco, nem furna, caverna, toca, por onde escorresse um corpinho de guri,
quanto mais passasse porte de homem!...
Desanimado e penaroso, compôs o cavalo e montou; e ao dar de rédea apareceu-lhe
pelo lado de laçar o sacristão, o vulto de face branca e tristonha, que
tristemente estendeu-lhe a mão, dizendo:
- Nada quiseste: tiveste a alma forte e o coração sereno, tiveste, mas não
soubeste governar o pensamento nem segurar a língua!... Não te direi se bem
fizeste ou mal. Mas como és pobre e isso te aflige, aceita este meu presente,
que te dou. É uma onça de ouro que está furada pelo condão mágico; ela te dará
tantas outras quantas quiseres, mas sempre de uma em uma e nunca mais que uma
por vez; guarda-a em lembrança de mim!
E o corpo do sacristão encantado desfez-se em sombra na sombra da reboleira...
Blau Nunes, meteu na guaiaca a onça furada, e deu de rédea.
O sol tinha cambado e o Cerro do Jarau já fazia sombra comprida sobre os
bamburrais e restingas que lhe formavam assento.
Na troteada para o posto em que morava, um ranchote de beira no chão tendo por
porta um couro -, Blau rumeou para uma venda grande que sortia aquele vizindário,
mesmo a troco de courama, cerda ou algum tambeiro; e como vinha de garganta seca
e a cabeça atordoada mandou botar uma bebida.
Bebeu; e puxou da guaiaca a onça e pagou; era tão mínima a despesa e o câmbio
que veio, tanto, que pasmou, olhando para ele, de tão desacostumado que andava
de ver dinheiro tanto, que chamasse seu...
E de dedos engatinhados socou-o todo para dentro da guaiaca, sentindo-lhe o peso
e o sonido afogado.
Calado, montou de novo, retirando-se.
No caminho foi pensando nas todas as cousas que carecia e que iria comprar.
Entre aperos e armas e roupas, um lenço grande e umas botas, outro cavalo, umas
esporas e embelecos que pretendia, andava tudo por uma mão-cheia de cruzados; e
a si próprio perguntava se aquela onça encantada, dada para indez, teria mesmo o
condão de entropilbar outras muitas, tantas como as que precisava, e mais ainda,
outras e outras que o seu desejo fosse despencando?!...
Chegou ao posto, e como homem avisado, não falou do que fizera durante o dia,
apenas do boi barroso, que campeou e não achou: e no dia seguinte, logo cedo
saiu a empeçar a prova do prometido.
Naquele mesmo negociante ajustou umas roupas tafulonas; e mais uma adaga de cabo
e bainha com anéis de prata; e mais as esporas e um rebenque de argolão.
Toda a compra passava de três onças.
E Blau, as fontes latejando, a boca cerrada, num aperto que lhe fazia doer o
carrinho, piscando os olhos, a respiração atropelada, todo ele numa
desconfiança, Blau, por debaixo do seu balandrau remendado começou a gargantear
a guaiaca... e caiu-lhe na mão uma onça... e outra... e outra... e outra!... As
quatro, que por agora eram tão de jeito!...
Mas não caíram duas e duas ou três e uma, ou as quatro, juntas, porém sim de uma
a uma, as quatro, de cada vez só uma...
Voltou ao rancho com a maleta atochada, mas, como homem avisado, não falou do
acontecido.
No outro dia seguiu a outro rumo, para outro negociante mais forte e de
prateleiras mais variadas. Já levava alinhavado o sortimento que ia fazer, e
muito em ordem foi encomendando o aparte das cousas, tendo cuidado em não querer
nada de cortar, só peças inteiras, que era para, no caso de falhar a onça,
recuar da compra, fazendo um feio, é verdade, mas não sendo obrigado a pagar
estrago algum. Notou a conta, que andava por quinze onças, uns cruzados pra
menos.
E outra vez, por debaixo do seu balandrau remendado, começou a gargantear a
guaiaca, e logo lhe foi caindo na mão uma onça... e segunda... outra... e
quarta, mais outra, e sexta... e assim de uma em uma, as quinze necessárias!
O negociante ia recebendo e alinhando sobre o balcão as moedas conforme vinham
elas minando da mão do pagador, e quando estavam todas disse, entre risonho e
desconfiado:
- Cuê-pucha!... cada onça das suas parece que é um pinhão, que é preciso
descascar à unha!...
No terceiro dia passou na estrada uma cavalhada; Blau fez parar a tropa e
ajustou uma quadrilha, apartada por ele, à sua vontade, e como facilitou o
preço, fechou-se o trato.
Ele e o capataz, sós no meio da cavalhada, iam fazendo mover-se os animais; no
apinhado de todas Blau marcava a cabeça que mais lhe agradava pelo focinho,
pelos olhos, pelas orelhas; com um sovéu fino, de armada pequena, reboleava por
dentro e ia, certo, laçar o bagual escolhido; se ainda, sem ovas e bons cascos,
aprazia-lhe, tirava-o então, como seu, para o potreiro do piquete.
Olho de campeiro, não errou vez alguma a escolha, e trinta cavalos, a flor,
foram apartados, custando quarenta e cinco onças.
E enquanto a tropa verdeava e bebia, os tratistas foram para a sombra duma
figueira que havia na beira da estrada.
Blau por debaixo do seu balandrau remendado, ainda desconfiando, começou a
gargantear a guaiaca... e foi logo aparando, onça por onça, uma, três, seis,
dez, dezoito, vinte e cinco, quarenta, quarenta e cinco!...
O vendedor, estranhando aquela novidade e demora, não se conteve e disse:
- Amigo! As suas onças parecem talas de jerivá, que só cai uma de cada vez!...
Depois desses três dias de prova Blau acreditou na onça encantada.
Arrendou um campo e comprou o gado, pra mais de dez mil cabeças, aquerenciado.
O negócio era muito acima de três mil onças, a pagar o recebimento.
Aí o coitado perdeu quase o dia inteiro a gargantear a guaiaca e a aparar onça
por onça, uma atrás da outra, sempre uma a uma!...
Cansou-lhe o braço; cansou-lhe o corpo; não falhava golpe, mas tinha de ser como
martelada, que não. se dá duas ao mesmo tempo...
O vendedor, à espera que Blau completasse a soma, saiu, mateou, sesteou; e
quando, sobre a tarde, voltou à ramada, lá estava ele ainda aparando onça, trás
onça!...
Ao escurecer estava completo o ajuste.
Começou a correr a fama da sua fortuna. E todos espantavam-se, por ele, gaúcho
despilchado de ontem, pobre, que só tinha de seu as chilcas; afrontar os
abonados, assim, do pé para a mão... E também era falado o seu esquisito modo de
pagar - que pegava sempre, valha a verdade -só de onça por onça, uma depois de
outra e nunca, nunca ao menos duas, acolheradas!...
Aparecia gente a propor-lhe negócio, ainda de pouco preço, só para ver como
aquilo era; e para todos era o mesmo mistério...
Mistério para o próprio Blau... muito rico... muito rico... mas de onça em onça,
como tala de jerivá, que só cai uma de cada vez... como pinhão da serra, que só
se descasca de um a um!...
Mistério para Blau, muito rico... muito rico... Mas todo o dinheiro que ele
recebia, que entrava das vendas feitas, todo o dinheiro que lhe pagavam a ele,
todo desaparecia, guardado na arca de ferro, desaparecia como desfeito em ar...
Muito rico... muito rico das onças que precisasse, e nunca faltaram para gastar
no que lhe parecesse: bastava-lhe gargantear a guaiaca, e elas começavam a
pingar;... mas nem uma das que recebia lhe ficava, todas evaporavam-se, como
água em tijolo quente...
Então começou a correr um boquejo de ouvido para ouvido... e era que ele tinha
parte com o diabo, e que o dinheiro dele era maldito porque todos com quem
tratava e recebiam das suas onças, todos entravam, ao depois, a fazer maus
negócios e todos perdiam em prejuízos exatamente a quantia igual à de suas mãos
recebida.
Ele comprava e pagava à vista, é certo; o vendedor contava e recebia, é certo...
mas o negócio empreendido com esse valor era de prejuízo garantido.
Ele vendia e recebia, é certo; mas o valor recebido, que ele guardava e rondava,
sumia-se como um vento, e não era roubado nem perdido; era sumido, por si
mesmo...
O boquejar foi alastrando, e já diziam que aquilo, por certo, era mandinga
arrumada na salamanca do Jarau, onde ele foi visto mais de uma feita... e que lá
é que se jogava a alma contra a sorte...
E os mais vivarachos já faziam suas madrugadas sobre o Jarau; outros, mais
sorros, pra lá tocavam-se ao escurecer, outros, atrevidaços, iam à meia-noite,
outros ainda ao primeiro cantar dos galos...
E como nesse carreiro de precatados cada um fazia por ir de mais escondido,
sucedeu que como sombras se pechavam entre as sombras das reboleiras, sem atinar
coa salamanca, ou sem topete para, na escuridão, quebrar aquele silêncio,
chamando o santão, num grito alto...
No entanto Blau começou a ser tratado de longe, como um chimarrão rabioso...
Já não tinha com quem pautear; churrasqueava solito, e solito mateava, rodeado
dos cachorros, que uivavam, às vezes um, às vezes todos...
A peonada foi saindo e conchavando-se noutras partes; os negociantes nada
compravam-lhe e negaceavam para vender-lhe; os andantes cortavam campo para não
pararem nos seus galpões...
Blau deu em cismar, e cisma foi que resolveu acabar com aquele cerco de
isolamento, que o ralava e esmorecia...
Montou a cavalo e foi ao cerro. Na trepada sentiu aos dois lados barulho nos
bamburrais e nas restingas, mas pensou que seria alguma ponta de gado xucro que
disparava, e não fez caso; foi trepando. Mas não era, não, gado xucro espantado,
nem guaraxaim corrido, nem tatu vadio; era gente, gente que se escondia uns dos
outros e dele...
Assim chegou à reboleira do mato, tão sua conhecida e recordada, e como chegou,
deu de cara com o vulto de face branca e tristonha, o sacristão encantado, o
santão.
Ainda desta vez, como era ele que chegava, a ele competia louvar; saudou, como
da outra:
- Lau’ Sus-Cris’!...
- Para sempre, amém! respondeu o vulto.
Então Blau, de a cavalo, atirou-lhe aos pés a onça de ouro, dizendo:
- Devolvo! Prefiro a minha pobreza dantes à riqueza desta onça, que não se
acaba, é verdade, mas que parece amaldiçoada, porque nunca tem parelha e separa
o dono dos outros donos de onças!... Adeus! Fica-te com Deus, sacristão!
- Seja Deus louvado! disse o vulto e caiu de joelhos, de mãos postas, como numa
reza. Pela terceira vez falaste no Nome Santo, tu, paisano, e com ele quebraste
o encantamento!... Graças! Graças! Graças!...
E neste mesmo instante, que era o da terceira vez que Blau saudava no Nome
Santo, neste mesmo momento ouviu-se um imenso estouro, que retumbou naquelas
vinte léguas em redor; o Cerro do Jarau tremeu de alto a baixo, até às suas
raízes, nas profundas da terra, e logo, em cima, no chapéu do espigão, apareceu,
cresceu, subiu, aprumou-se, brilhou, apagou-se, uma língua de fogo, alta como um
pinheiro, apagou-se, e começou a sair fumaça negra, em rolos grandes, que o
vento ia tocando para longe, por cima do encordoado das coxilhas, sem rumo
feito, porque a fumaceira inchava e desparramava-se no ar, dando voltas e
contravoltas, torcendo-se, enroscando-se, em altos e baixos, num desgoverno,
como uma tropa de gado alçado, que espirra e se desmancha como água passada em
regador...
Era a queima dos tesouros da salamanca, como dissera o sacristão.
Sobre as caídas do Cerro levantou-se um vozerio e tropel: eram os maulas que
andavam rastreando a furna encantada e que agora fugiam, desguaritados, como
filhotes de perdiz...
Para os olhos de Blau o cerro ficou como de vidro transparente, e então viu ele
o que lá dentro se passava: os brigões, os jaguares, os esqueletos, os anões, as
lindas moças, a boicininga, tudo, torcido e enovelado, amontoado, revolvido,
corcoveava dentro das labaredas vermelhas que subiam e apagavam-se dentro dos
corredores, cada vez mais carregados de fumaça... e urros, gritos, tinidos,
silbidos, gemidos, tudo se confundia no tronar da voz maior que estrondeava no
cabeço empenachado do cerro.
Ainda uma vez a velha carquincha transformou-se na teiniaguá... e a teiniaguá na
princesa moura... a moura numa tapuia formosa;... e logo o vulto de face branca
e tristonha tornou à figura do sacristão de S. Tomé, o sacristão, por sua vez,
num guasca desempenado...
E assim, quebrado o encantamento que suspendia fora da vida das outras aquelas
criaturas vindas do tempo antigo e de lugar distante, aquele par, juntado e
tangido pelo Destino, que é o senhor de todos nós, aquele par novo, de mãos
dadas como namorados, deu costas ao seu desterro, e foi descendo a pendente do
coxilhão, até a várzea limpa, plana e verde, serena e amornada de sol claro,
toda bordada de boninas amarelas, de bibis roxas, de malmequeres brancos, como
uma cancha convidante para uma cruzada de ventura, em viagem de alegria, a
caminho do repouso!...
Blau Nunes também não quis mais ver; traçou sobre o seu peito uma cruz larga, de
defesa, na testa do seu cavalo outra, e deu de rédea e d’espacito foi baixando a
encosta do cerro, com o coração aliviado e retinindo como se dentro dele
cantasse o passarinho verde...
E agora, estava certo de que era pobre como dantes, porém que comeria em paz o
seu churrasco...; e em paz o seu chimarrão, em paz a sua sesta, em paz a sua
vida!...
Assim acabou a salamanca do Cerro do Sarau, que aí durou duzentos anos, que
tantos se contam desde o tempo das Sete Missões, em que estas cousas
principiaram.
Anhangá-pitã, também, desde aí, não foi mais visto. Dizem que, desgostoso, anda
escondido, por não haver tomado bem tenência que a teiniaguá era mulher...
Texto pesquisado e desenvolvido por
ROSANE VOLPATTO
Bibliografia:
Mitos e Lendas do Rio Grande
do Sul - Antonio Augusto Fagundes; Martins Livreiro - Editor; 1992