CAMBAÍ

Foi
Walter Spalding que fez o registro desta lenda:
Entre as
coxilhas do Pau Fincado e Caibaté, próximo aos banhados, depois
denominados de São Gabriel, na margem esquerda do rio Vacacaí,
encontravam-se acampados os dois exércitos que deviam demarcar
os limites pactuados entre Espanha e Portugal, na Capitania de
São Pedro do Rio Grande do Sul.

Em 7 de
fevereiro de 1756, três dias após a morte de Sepé Tiarajú,
voltaram as tropas à luta. Os indígenas foram mais uma vez
derrotados, desaparecendo um outro chefe: Nicolau Languiru.
Caíram também em poder do inimigos muitos prisioneiros.
Um destes
indígenas prisioneiros, que fora amigo íntimo de Sepé, cujo nome
era Ibaringuã, conquistou a amizade do preto Manuel, jovem ainda
e, apesar de todos os sofrimentos por que já passara, era
esperto e curioso.
Em virtude
de sua baixa estatura e sua cor, Manuel foi apelidado de Cambaí
(negrinho) pelos indígenas.

Ibaringuã e
Cambaí tornaram-se bons amigos e, sempre que as ocasiões lhes
permitia, conversavam. O negrinho contava os horrores das
senzalas e o indígena as delícias de suas tabas missioneiras.
Mútua
confiança estabeleceu-se entre ambos e de tal sorte que não
vacilaram em unir-se instintivamente, como faziam os gauleses ao
se jurarem eterna amizade. Só não repetiam o gesto desses povos,
porque não se ligaram por meio de correntes para que nem a morte
os separasse.
Com a união,
tramaram a fuga não apenas deles, mas de quantos mais pudessem
levar consigo.

Tudo foi
preparado então, para em uma noite de luar fraco, formarem um
levante e, desorientando os guardas e as próprias forças, se
entranharem, em grupos de três e quatro, pelas matas das margens
do Vacacaí, do Salso, e pelas serrarias do Batovi e onde mais
pudessem.
Entretanto,
um acontecimento que os "inconfidentes" julgaram providencial,
precipitou o que haviam combinado: o general dera ordem para que
um piquete fosse caçar gado para alimentar a tropa e mandou que
levassem, como auxiliares, a pé, uma dezena de índios e alguns
escravos.

Ao receberem
esta ordem, todos os semblantes dos conluiados se abriram em
sorrisos. E foram, como que o juramento final e a senha para a
execução do plano.
O piquete
deveria contra-marchar rumo ao sul, onde havia gado em
abundância, pertencente aos índios de Santa Tecla. Atravessaram
o Vacacaí e, aí a dispersão se fez. Aproveitando as matas
marginais, pretos e indígenas por elas se embrenharam com gritos
ferozes, que eram verdadeiros hinos à liberdade!
Houve tiros
e correrias. Os soldados saltaram de seus cavalos e iniciaram
violenta perseguição aos fugitivos, enquanto o comandante da
expedição rumou em desabalada corrida a fim de pedir reforço e
avisar do acontecido.

Horas e
horas durou a caça aos fugitivos. Alguns foram mortos a tiro.
Dos pretos, dois foram presos, entre os quais Manuel. Também
alguns indígenas. Ibaringuã, porém, não fora agarrado. Mas,
vendo que seu aliado e amigo ficara nas mãos dos portugueses,
resolveu atacá-los, ele e mais dois, a pedradas e longas varas à
guisa das lanças. Certeiros tiros deitaram por terra dois,
fugindo o terceiro. Ibiringuã ali ficara, dormindo o sono da
eternidade....
Mas no ardor
da luta contra os três índios, Manuel conseguiu fugir novamente.
Entretanto, preso logo depois, foi apontado pelos companheiros
de cativeiro como chefe da rebelião. E quando o reforço chegou,
a sorte o preto Manuel estava assentada: seria imediatamente
executado e seus restos atirados, para exemplo, nas águas
límpidas do Imbrajatuava, em cujas margens estavam, no momento.

O negro,
amarrado ao tronco de uma árvore com fortes cipós, sentiu, pela
última vez, os horrores do látego: apanhou até ficar com o corpo
todo cortado em tiras. As raízes da árvore, um mimoso pé de
jequitibá, tingiram-se com o vermelho do sangue de Manuel. E
dizem, que é por isso que o jequitibá se tornou robusto e
frondoso e é, ainda hoje, um gigante das florestas gaúchas...
Depois arrastaram o corpo do pobre infeliz e o atiraram às águas
do Imbrajatuava.
Desde este
dia, o rio que era bastante caudaloso, tornou-se brando e
delicado. E os indígenas, em memória ao fato, passaram a
denominá-lo de: CAMBAÍ-I, o rio do Negrinho.

E o Cambaí,
hoje murmuro arroio que divide os municípios de São Gabriel e
São Sepé, só em documentos do século XVIII traz ainda o nome
pitoresco de Imbrajatuava, rio que tem a seus pés muitas árvores
frutíferas que também, contam, desapareceram de suas margens
depois que as águas serviram de sepultura ao corpo estraçalhado
do infeliz Camabaí...
Texto
pesquisado e desenvolvido por
Rosane
Volpatto

Lendas
do Rio Grande do Sul - Dante de Laytano - Publicação Estadual de
Folclore do Rio Grande do Sul; RJ; 1956
Estórias e Lendas do Rio Grande do Sul
Barbosa Lessa; Gráfica e Editora EDIGRAF Ltda; SP
Mitos e Lendas do Rio Grande do Sul -
Antonio Augusto Fagundes; Martins Livreiro Editor


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