O ÊXTASE DA DESCOBERTA

“....a terra em si é muito boa de ares, tão frios e temperados,
como os de Entre-Douros e Minho, porque, neste tempo de
agora, assim os achávamos como os de lá. Águas são muitas
e infindas. De tal maneira é graciosa que, querendo aproveita-la
dar-se-á nela tudo por bem das águas que tem.”

(Pero Vaz de Caminha)

 

A TERRA-MULHER                                

 A América é uma mulher...

 Esta era a concepção desta terra no século XVI. Era uma fêmea de ventre opulento, apresentando longos cabelos decorados com conchas e plumas, pernas musculosas tal tronco de árvore antiga, braços abertos de rios ao encontro do mar, lindos e verdejantes montes, que caracterizavam seus fartos seios nus...

Esta representação traduzia um discurso:"a América, como uma bela e perigosa mulher, tinha que ser vencida e domesticada para ser melhor explorada". Esta metáfora, na prática, serviu para ilustrar as relações de gênero, no período da conquista. Realmente retratam bem o estupro sofrido por esta bela, receptiva, doce e virgem terra....

Sobre o corpo desta exótica mulher, travou-se uma luta intensa entre o homem branco e o nosso ancestral indígena. Seus primaveris campos cobriram-se de sangue de seus tão amados filhos. Pouco a pouco, as tribos nativas foram conquistadas. Depois vieram as doenças, com o extermínio de nações inteiras...

Hoje, parte do povo indígena já perdeu o ânimo e a esperança de reencontrar novamente a sua terra-sem-males. Em conseqüência desta desesperança é alarmante e preocupante o fenômeno dos suicídios que, nos últimos anos tem ocupado destaque nos jornais do país. A vitória do instinto da morte denota que o nosso índio perdeu a consciência de seu destino. É o pior dos finais para uma história que iniciou-se tão magnífica.....

Antes, donos absolutos da terra, hoje  a população ameríndia luta pelo direito ao seu quinhão de terra, pelo resgate de sua cultura e por sua cidadania....

O PRIMEIRO APAIXONANTE OLHAR...                 

"E o melhor fruto que dela se poderá tirar será salvar esta gente"

(Pero Vaz de Caminha)

A primeira e mais completa descrição da terra que nos coube de herança, foi a Carta que Pero Vaz Caminha enviou ao El-Rei Dom Manoel de Portugal, onde toma-se conhecimento sobre a vida rude e boa do homem aqui encontrado, que mais tarde, também seduziria o espírito de Montesquieu.

A tão famosa carta é um poema de cunho histórico, inspiração de pura veia lírica bem servida por uma inteligência criativa que a tudo se abria e se voltava. Mas tal percepção, vivia no alvor do século XVI e só podia se servir dos conhecimentos escassos vigentes na época.

A Carta de Pero Vaz de Caminha é, entretanto, a primeira lição de geografia da nossa terra:

"E assim seguimos nosso caminho, por este de longo, até que terça-feira das Oitavas da Páscoa, que foram 21 de Abril, topamos com alguns sinais de terra... E quarta-feira seguinte, pela manhã, topamos aves a que chama de furabuchos...Neste mesmo dia à hora de véspera, houvemos vista de terra!...E quinta-feira, pela manhã, fizemos vela e seguimos em direitura à terra, indo os navios pequenos adiante.. E chegaríamos a esta ancoragem às dez horas..E dali avistamos homens que andavam pela praia, uns sete ou oito, segundo os navios pequenos que chegaram primeiro".

São estes sete ou oito homens, os primeiros filhos da terra de Vera Cruz que os portugueses avistaram. "Pardos, nus, sem cousa alguma que lhes cobrisse suas vergonhas. Traziam arcos nas mãos e suas setas. Vinham todos rijamente em direção ao batel. E Nicolau Neto lhe fez sinal que pousassem os arcos. E eles o depuseram. Mas não pode deles haver fala nem entendimento que aproveitasse, por o mar quebrar na costa..." A noite seguinte ventou tanto sueste com chuvaceiro que fez caçar as naus.."E sexta-feira pela manhã, às oito horas, pouco mais ou menos, por conselho dos pilotos, mandou o Capitão levantar âncoras e fazer velas.... E quando fizemos velas, estariam já na praia assentados, perto do rio, obra de sessenta a setenta homens que haviam juntado ali aos poucos.."

No segundo dia de posse da terra, sexta-feira, os homens em terra que se mostram à tripulação de Cabral, já são sessenta ou oitenta, mas Caminha continua deslumbrado por todas as coisas novas que seus olhos vêem, sendo assim, o escrivão enfeitiçado continua seu relato:

"A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de cobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que mostrar a cara. A cerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado, e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque-de-xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber." Vaz de Caminha, pondera aqui, sua surpresa e cisma sobre a cor do índio. O "avermelhado", posto desta forma, é para estabelecer um plano de aproximação entre as duas raças que se avistam pela primeira vez. Entretanto, o preconceito levará o homem branco a chamar de "vermelho" (pele vermelha) o homem americano.

Aquele vermelho que Caminha visualizou na pele acobreada do índio, será o mesmo vermelho que os outros descobridores portugueses, espanhóis e franceses, irão revelar ao mundo, dando um detalhe falso sobre o matiz bronzeado do índio. O europeu jamais se deu o trabalho de compreender a cor da epiderme do nosso índio. Depois de Caminha, milhares de outros homens descreveram o tipo americano, mas todos continuaram a vê-lo como "vermelho", o que hoje sabemos não ser verdade.

Caminha prossegue a sua exposição, para nos informar: "Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com cabelos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas tam altas e tam cerradinhas e tam limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos não se envergonhavam....E uma daquelas moças era toda tingida, de baixo a cima, a sua vergonha (que ela não tinha) tam graciosa que a muitas mulheres da nossa terra, vendo-lhe tais feições, envergonhara, por não terem as suas como ela."

Neste episódio, ressalta Caminha que as moças que encontraram em nossa terra, das quais oferece retrato tão apaixonado, não acusavam envergonhar-se por serem vistas nuas. Parece-nos que o escrivão, ficou de súbito, enfeitiçado pelas nossas virgens morenas. Realmente, para aqueles homens encurralados meses no desconforto de suas naus, vencendo tantos perigos, ao verem aquelas índias tão belas e nuas passeando pela praia, era a própria visão de Vênus que ressurgia das vagas. Quem não morreria de paixão?

Neste episódio seguinte, o cronista expressa a sua admiração pela pintura dos homens e das mulheres, que para ele constituía elemento de mera vaidade: "Ali vereis galantes, pintados de preto e vermelho e quartejados, assim pelos corpos como pelas pernas, que certo, cinco mulheres bem novas, que assim nuas não pareciam mal. Entre elas andava uma com uma coxa, do joelho até o quadril e a nádega, toda tingida daquela tinta preta; e todo o rosto da sua cor natural.

 Outra trazia ambos os joelhos com as curvas assim tintas; e também os colos dos pés, e suas vergonhas tam nuas, e com tanta inocência descobertas, que não havia nisso desvergonha alguma". Entretanto, a etnologia nos ensinou que tais pinturas tinham três origens: embelezamento, defesa higiênica e totemismo.

"Também andava lá outra mulher, nova com um menino ou uma menina, atada com um pano aos peitos, de modo que não se lhe viam senão as perninhas. Mas nas pernas da mãe, e no rosto, não havia pano algum."

É costume ainda hoje, as índias americanas conduzirem o filho às costas ou à esguelha, que lhe dá absoluta liberdade de movimentos, podendo locomover-se para todos os lados com rápida postura e agilidade.

                                     

A seguir, retorna a carta: "E além do rio andavam muito deles, dançando e folgando, uns diante dos outros, sem se tomarem as mãos. E faziam bem.." Esta referência nos comprova que as tribos brasileiras conviviam felizes e enchiam seu tempo com alegria.

 

Os detalhes nas observações de Caminha é esgotante, como capacidade de ver e transmitir, mas não poderá ir além dos limites criados pela circunstância do encontro. Os padres, evitavam tanto quanto possível, conviver na intimidade do índio. Catequizavam-no para a doutrina e a sociedade, atraindo-o e fazendo-o assimilar os conceitos da doutrina cristã. Agiam, porém, sob formas rígidas e não puderam, nem saberiam, fixar do ponto de vista morfológico, os caracteres do povo que o destino lhe pusera no caminho.

 

Caminha, tece a seguir algumas das realidades da natureza, que seus olhos não cansam de admirar, deixando-nos uma pequena descrição do Brasil à luz do descobrimento:

 "Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o Sul vimos, até a outra ponta que contra o Norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. Traz ao longo do mar em algumas partes grandes barreiras, umas vermelhas, e outras brancas; e a terra de cima toda chã e muito cheia de grande arvoredos. De ponta a ponta é toda praia muito chã e muito formosa. Pelo sertão nos pareceu, vista do mar, muito grande; porque a estender olhos não podíamos ver senão terra e arvoredos, terra que nos parecia muito extensa."

 

Logo depois, Caminha não esquecerá de falar na grande preocupação que iria no século seguinte, alucinar a imaginação de portugueses e espanhóis, o ouro, a prata, ou outro metal, como o ferro, que confessa não ter visto. Mas para que esta decepção não mareie o brilho da narrativa e entristeça a alegria do achado, deixa cair da pena a frase famosa e comovedora:

"Contudo a terra em si é de muitos bons ares, frescos e temperados como os de Entre-Douro e Minho, porque neste tempo de agora assim os achávamos como os de lá. As águas são muitas, infinitas".

E o remate: "Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aproveitar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem".

 

Mas esta Carta que pinta magníficos quadros da nossa terra, transmite detalhes do índio, da índia, da vida em comum, dos hábitos e costumes, não poderia fechar sem uma nova referência ao plano espiritual. Caminha pagão e enamorado pela natureza, se vê inserido em um sentimento mítico de fé e acrescenta: "Com tudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calecut, bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber acrescentamento da nossa santa fé".

 

A seguir, Vaz Caminha se desculpa, perante o Rei, da Carta ser grande, justificando-a daquele tamanho, pelo desejo que tinha de tudo dizer, concluindo com a mercê solicitada para o genro Jorge de Osório ser removido da Ilha de São Tomé.

 

Esta Carta é a primeira página de letras poéticas que descrevem o Brasil. Nela se inseri um relatório exaustivo do homem encontrado nesta terra. Também há, uma descrição detalhada e paisagística das matas e praias que foram avistadas pelas naus. Tentou Caminha, com sua mente luminosa, descrever com minúcias os segredos contidos no jovem Brasil recém descoberto.

    CURIOSIDADES... 

A Carta de Pero Vaz de Caminha foi escrita em português renascentista e teve, que várias vezes, ser reescrita. A versão mais respeitada pelos historiadores é a de D. Carolina Maichaelis de Vasconcelos e Jaime Cortesão. Ela foi escrita em 1 de maio de 1500, mas só foi encontrada três séculos depois em 19 de fevereiro de 1773 por José de Seabra da Silva, guarda mor do arquivo da Torre do Tombo, em Lisboa. Até hoje a carta permanece neste local. Foi também publicada pela primeira vez pelo elo historiador e sacerdote Manuel Aires de Casal, que suprimiu todos os trechos que julgou eróticos.

PERO VAZ DE CAMINHA

O Brasil deve a uma tentativa de roubo o relato mais detalhado sobre o seu descobrimento. Em 1946, um português chamado Jorge de Osório foi condenado por assaltar uma igreja e ferir um padre. Recebeu punição severa: o degredo na insalubre Ilha de São Tomé, na costa ocidental da África. Quatro anos depois, Pero Vaz de Caminha, nomeado para o cargo de escrivão na feitoria de Calicute, embarcava para a Índia como mensageiro da frota comandada por Pedro Álvares Cabral que tem a missão de conhecer as novas terras à oeste do caminho para as Índias.

Caminha, ao chegar ao Brasil, percebeu que a descoberta era a oportunidade que esperava para ajudar Osório, seu genro. Por iniciativa própria, escreveu uma carta pessoal ao rei Dom Manuel, rogando-lhe a libertação do parente. O escrivão tomava tal liberdade por se julgar amigo do soberano, devido a serviços prestados à coroa pelo pai e o avô. Para amaciar o rei, floreou o pedido com uma descrição minuciosa da nova terra. No último parágrafo, logo acima da assinatura e da data de 1 de maio, pespegou:"Peço que, por me fazer singular mercê, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro".

Pero Vaz de Caminha, nasce supostamente na cidade do Porto, em 1450, filho do cavaleiro do Duque de Bragança, Vasco Fernandes de Caminha. Casa-se com Dona Catarina e com ela tem uma filha, Isabel. Em 1476, então com 26 anos, passa a ocupar o lugar de seu pai na Casa da Moeda portuguesa, como mestre de balança e, eleito vereador, coubera-lhe redigir os relatórios da Câmara Portuense.

A Carta que escreveu, composta de 27 folhas manuscritas, acabou por transcender sua condição íntima e se converteu num inestimável e maravilhoso documento histórico. Com faro de repórter e talento literário, Caminha fixou o primeiro encontro dos europeus com um mundo totalmente novo. Esmiuçou os rastros dos portugueses nos 10 dias de permanência na terra e deixou uma série de observações sobre os hábitos e comportamentos dos tupiniquins, tudo registrado num tom entre o científico e o sensacionalista.

Os destinos de Caminha e de sua carta, separaram-se em maio. A missiva seguiu na nau de mantimentos, esvaziada e mandada a Lisboa para informar o rei sobre a descoberta. O missivista prosseguiu viagem para a Índia. A chegada a Calicute e a instalação da feitoria ocorreram cinco meses depois. Incomodados com a concorrência, cerca de 300 comerciantes árabes atacaram de surpresa o enterposto. Caminha foi contabilizado entre os 50 portugueses chacinados, definitivamente, ele passa então, a fazer parte da nossa história.

OS TUPINIQUINS E OS HÓSPEDES PORTUGUESES

Os aguerridos tupiniquins foram os primeiros habitantes do Pindorama maravilhoso que recepcionaram, o hóspede português Cabral e seus companheiros. Tiveram também a honra de serem descritos pelo melífluo Pero Vaz de Caminha, que tantas belezas encontrou neste pedaço, até então, esquecido de terra, nos poucos dias que aqui esteve.

À lealdade e à operosidade dos tupiniquins devem os donatários das capitanias de Ilhéus e Porto Seguro o progresso rápido que obtiveram, apesar de terem pago, em troca, com a escravidão e a tirania.

Tiveram sorte os portugueses em aportar justamente onde campeava a tribo dos tupiniquins, pois eram um povo de costumes apurados, muito trabalhador, dócil e leal entre todos que habitavam a vastíssima orla litorânea da rica terra brasileira.

A VERDADE QUE DEVE SER DITA...

Há mais de 500 anos, dentro de um processo globalizante, deflagrado pelo ciclo das navegações ibéricas, chegaram ao Brasil as naus portuguesas. Entretanto, esta descoberta não é motivo de júbilo, pois nossa história teve como marco zero, um grosseiro ato de rapina, ou seja, foram praticadas violentas e injustas invasões.

O Brasil não foi descoberto, o que processou-se foi uma invasão armada a uma terra que já tinha dono. Se hoje invadir terras é um ato ilícito, como não considerar essa ilicitude na gênese da nossa história? Os conquistadores prostituíram nosso indígena com quinquilharias, enquanto surrupiaram ouro, prata, pau-brasil e a dignidade de nosso índio. Eles aqui chegaram com uma espada na mão, com a qual praticaram um verdadeiro genocídio. Seu cabo invertido transformou-se em cruz e com ele, desenraizaram o espírito de um povo da terra e de sua cultura milenar.

Mas pior que o uso da força no passado, é a ideologia que nos despe de nossa humanidade e nos torna insensíveis ao sofrimento alheio. 

Que país é este que queima índio em praça pública e alega ser brincadeira de adolescente?

 

Que país é este que não se sensibiliza com o suicídio de mais de 300 índios e ainda alega que o fato ocorreu em virtude do uso excessivo de álcool? 

 

Que país é esse que considera o índio incapaz e o coloca à margem de uma sociedade preconceituosa sem lhes dar a oportunidade de um bom emprego e uma vida digna?

 

Estas realidades nos levam a acreditar que nossa democracia encontra-se em estado de gravíssima enfermidade....

Felizmente, ainda não nos roubaram a capacidade de sonhar e nos mobilizar para criarmos um mundo melhor....

"Sabemos que o homem branco não compreende nossos costumes. Uma poção de terra, para ele, tem o mesmo significado que qualquer outro, pois é um forasteiro que vem à noite e extrai da terra aquilo que necessita. A terra não é sua irmã, mas sua inimiga, e quando ele a conquista prossegue seu caminho. Deixa para trás os túmulos de seus antepassados e não se incomoda..."

Texto pesquisado e desenvolvido por

Rosane Volpatto