A história de uma nação é
escrita de muitas maneiras. Uma das mais fecundas é através do conhecimento
das realizações e idéias que pairavam sobre este povo. Me atenho neste
momento a estudar os ideais, as ambições, o estado de espírito e as
contradições da época predominantes na vida de nossas ancestrais índias.
Falar sobre esta energia radiante feminina é descobrir como o país nasceu,
cresceu e se consolidou como nação.
Acompanhar a vida destas
mulheres aqui evocadas é enxergar os momentos decisivos da nossa história
pelos olhos de quem estava no redemoinho dos acontecimentos.

MOEMA

Desde o fértil rio Itapirucú,
até o profundo Mucurí, dominava a próspera nação dos Paraguás, irmã dos
Tupis e com os Tamarés comerciavam, vivendo em paz e serenidade.
Taparica, o invencível e
grande chefe, dominara certa vez, no alto da serra dos Maracás, em luta
singular, o terrível Jacaré Sagrado, que todos os meses danificava as
plantações e devorava, por ordem de Anhangá, deus dos infernos, um menino de
11 anos. Tal vitória, grangeou-lhe a estima e simpatia de toda a nação. Nesta
tribo guerreira e cheia de heróis, nasceu Moema, filha de Taparica e irmã de Paraguassú.
A jovem índia cantava nas
sacras solenidades, enaltecendo os deuses. Ela era muito linda e muito amada por Tambatajá, deus do amor e sob sua divina proteção cresceu a donzela em grande
solidão na famosa oca paterna.
Certa noite, exatamente quando
os inevitáveis sonhos dirigem-se aos mortais, sob as ordens de Vapuaçú,
sonhou a bela jovem que, uma grande igara (navio) de bravos guerreiros, veio
para ela e um altaneiro crebam (homem branco) lhe estendeu seus valentes
braços. Depois, quando ela se apaixonou pelo estrangeiro, a igara desapareceu
no distante horizonte. Veio, por fim, a madrugada, desaparecendo os últimos
vestígios do espírito dos sonhos, a jovem levantou-se.
Em seguida, chega um cortejo
de alegres jovens, que vinham ajudá-la nas sacras danças, nos alegres cantos e
nas suaves caminhadas. Chegavam, com a finalidade de convidá-la para um passeio
ao grande porto dos deuses, que ficava próximo da tribo entre uma abundante
floresta e o suave bramir do verde oceano.
Todas as indiazinhas, estavam
vestidas de brancos pelos e penas multicoloridas, trajando em suas frontes,
adornos preciosos. Moema vestia também, um inigualável tecido de lontra, com
lindos enfeites de ouro, cheios de diamantes. Tão linda veste, fora trabalho de Caupé, a deusa da beleza e formosura que dera como dádiva a sua mãe. Assim
trajada, seguiram para o local já determinado.
O grupo de donzelas
espalhou-se muito feliz e cada uma procurava uma flor que desejava. Apiá colheu
a formosa dália listrada. Taci, o suave girassol, Joamá preferiu a violeta
pelo seu meigo perfume, Iné colheu o incomparável amor-perfeito, Icí apanhou
a delicada margarida, Peró escolheu o elefante cravo e assim corriam e
brincavam sem preocupações. Porém Moema, sobressaindo-se entre as outras,
trazia nas mãos, um soberbo ramo de brancas rosas.
Cansadas da correria,
deitaram-se na verde relva e se passaram a entoar lindos cânticos em honra a Tambarajá e as Parés (deusas da fé), deusas que percorrem as praias, as
selvas, as campinas e as tabas, alentando a fé, a esperança e caridade.
Tudo corria muito bem quando,
em dado momento, surge no risco do horizonte, uma igara muito grande, que vinha
em direção as moças. Amedrontadas, foram chamar os valentes guerreiros da
tribo. Todos se conduziram para junto do mar, porém, o Boto e os Angás cheios
de ira, chamaram Xandoré, deus do mal e juntos lançaram uma forte tempestade
sobre a grande igara e, quando esta afundava e estavam morrendo todos os crebans,
Tolori, deus da tempestade, compadecido, salvou o mais jovem de todos, com o
auxílio das Jurúas, deusas das nuvens, das tardes e das festas.
Assim,
veio dar à praia, o guerreiro branco. Moema e suas companheiras, contemplavam
surpresas o belo jovem e tão logo ele recobrou a consciência, lançou mão de
sua arma e atirando com firmeza, matou um forte açor que passava naquele
momento. De todos os lábios saiu uma só exclamação:
-"Caramuru!"
Pensaram
que ele era o próprio deus do fogo, metamorfoseado em homem.
E
assim, conseguiu impor-se aquele jovem branco a toda a tribo dos Paragás.
Então, o grande chefe Taparica, tocou três vezes o forte maracá e Moema
voltou-se com as donzelas para servirem o sacro hóspede e os valentes
guerreiros que vieram para protegê-las. O guerreiro branco torna-se filho de
uma nação destemida!
Certa
tarde, quando Caramurú passeava pela praia, Guraraci (deus Sol) resplandecia
nas alturas sem nuvens e, olhando, viu creban ao longe e um pouco mais a frente,
sentada na relva macia, estava Moema. Então Tambatajá tocou o coração do
jovem e ele se apaixonou pela donzela. Parê, a deusa da esperança, também
envolveu os jovens e Moema passa a amar o guerreiro branco loucamente.
Jurou
terminantemente, Piracurú, deus da maldade, que a bela índia não seria feliz
e fez entrar no coração do jovem, uma profunda saudade de seu país.
Um
dia surgiu, no grande porto uma forte e soberba igara. Dois guerreiros brancos
saltaram em terra e depois de longa conversa com Caramurú, ficou resolvido que
ele retornaria a sua pátria. Lamentos sem conta nasceram do peito e a dor da
separação e uma repentina tristeza, tomaram conta de Moema.
Finalmente
o dia da partida chegou. Polo fez soprar um vento leve e favorável, Juruá,
cobriu um pouco os quentes raios de Guaraci e a igara começou a mover-se. As
límpidas vagas marulharam ao forte golpe dos remos e a embarcação de velas
brancas, zarpou para o alto mar. Mal podia Pirarucú contar o grande e cruel
contentamento impiedoso, por ver seu plano sinistro, tenha se concretizado.
Entre
amargas lágrimas, Moema percebeu que não mais poderia viver sem o guerreiro
branco e atirando-se na água, tentou alcançar a igara que fugia para
longínquo porto. Por muito tempo a linda jovem nadou e quando suas forças lhe
faltaram por completo, Abeguar, deus dos ventos, suplicou as poderosas Parajás
que a salvassem, mas o destino a jovem índia era aquele e as águas sem
piedade, tragaram o seu belo corpo.
Sumá,
compadecida, pediu a Tupã e pelo consentimento do Senhor dos Imortais e o mar
sob as ordens do Boto, devolveu o corpo da meiga jovem às praias de sua bela
pátria.
Assim,
extinguiu-se a formosa filha da próspera nação e por muitos anos, as virgens,
suas companheiras, em grande pranto, lamentavam a morte da encantadora Moema.
HERANÇA
INDÍGENA
Do
índio herdamos a mansidão, a delicadeza do trato, o amor pelos animais e a
acuidade para todas as coisas. Presenteou-nos também, com a força diante do
sofrimento, a ternura contemplativa da terra, o apego às crianças e a
sensibilidade. Mas não só de ordem espiritual são os bens que os índios nos
transmitiram. Na língua a qual falamos, sua contribuição foi enorme. Ainda
hoje o sabor das formas toponímicas do indígena continua a designar montanhas
e vales, os rios e lagos, os brejos e restingas, exatamente como o índio fazia.
No
campo da zoologia e da botânica, há igualmente o predomínio absoluto dos
nomes indígenas. Muitas outras coisas os índios ensinaram ao homem branco que
aqui chegou.
No
século XVI, as naus não dispunham de espaço para transportar muitas
utilidades. Viajavam sem conforto, conduzindo pouco mais que a roupa do corpo e
chegados à terra dos índios, iam viver com eles. Os potes de barro, igaçabas,
cabaças, cestos e esteiras que constituíam a arte índia, eram os objetos de
conforto com que contavam o povo europeu aqui chegado. As próprias crianças
brancas, tiveram a mesma distração do indiozinho, o tosco boneco de barro, que
deu curso às suas primeiras reações. O homem branco, absorvido pelo meio,
despiu-se pouco a pouco dos hábitos que se apegara na terra de origem. E desta
forma, foi-se processando a adaptação, a fusão das duas raças, dando o
cruzamento um tal ascendente ao índio sobre o português, que este se dispôs a
reagir, sob vários pretextos, quando na verdade o fazia para não sucumbir.
Mas
era, sobretudo, no domínio do espírito, que o índio melhor influía. Influía
sobre a sensibilidade do branco, de todas as maneiras, na ação exercida pela
índia no convívio do lar, nos pequenos e delicados serviços caseiros de que
era artífice exímia e na força da persuasão e do amor com que servia. Hábil
e envolvente a mulher índia contribuí enormemente na formação social
brasileira.
O
índio tem sido, entretanto, um ser a quem se nega justiça. Destituído da
posse de suas terras, acusado de inércia e falta de aptidão para o trabalho,
vive marginalizado pela sociedade contemporânea.
O
índio é dono de um passado que nos é inteiramente desconhecido, cioso deste
passado, orgulhoso de sua raça e irônico diante da nossa pretendida
superioridade espiritual. Não é o ser impermeável que se presume, antes
disso, é inteligentíssimo, vivo e capaz de aprender todas as coisas.
Neste
momento em que se procura imprimir uma orientação nacionalista, a questão do
índio é precípua. Nós não chegaremos a ser um grande país, com espírito e
formação nacional próprios, se não nos orientarmos, social e politicamente,
fora dos moldes alheios, numa firme diretriz, com o sentido de amor à terra, de
compreensão e da valorização do índio, seu legítimo dono.
Texto de ROSANE VOLPATTO


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