~*~LAMPIÃO E MARIA BONITA~*~

 

A ERA DO CANGAÇO

 

No século XVII, ocorreu o deslocamento do centro da economia para o sul. O sertão nordestino já castigado pelo flagelo das secas prolongadas, vê agravar-se as desigualdades sociais. Neste panorama visualiza-se a figura do coronel, detentor de todo o poder e lei da região que considerava-se senhorio. A existência de constantes conflitos devido à posses e limites geográficos entre as fazendas, além das rivalidades políticas, fizeram com que estes senhores feudais, procurassem cercar-se do maior número de jagunços (vassalos dos coronéis) e cabras, necessários para defender seus interesses. Deste modo, se criaram verdadeiros exércitos particulares e verdadeiras guerras foram travadas entre famílias. Este quadro, como vemos, foi propício para o aparecimento do banditismos.

No final do Império e em seguida a grande seca de 1877-1879, a miséria e a violência eram crescente, o que viabilizou, em face da luta pela própria sobrevivência, o surgimento dos primeiros bandos armados independentes do controle dos grandes fazendeiros. Nesta época, destacavam-se os bandos de Inocêncio Vermelho e de João Calangro.

O cangaço, entretanto, só toma vulto na República, com a figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.

LAMPIÃO, HERÓI OU BANDIDO? COM CERTEZA, UM MITO.

              

"É lamp, é lamp, é lamp

É Virgulino Lampião

É o Rei do Cangaço

Interventor lá do sertão".

Virgulino nasceu no dia 04 de junho de 1898, no Sítio Passagem das Pedras, na Serra Vermelha, atual Serra Talhada, no estado de Pernambuco. Seus pais eram José Ferreira e Maria Sulena da Purificação e ele era o terceiro filho do casal.

Ele foi batizado aos três meses de nascido, na capela do povoado de São Francisco, sendo seus padrinhos os avós maternos: Manuel Pedro Lopes e D. Maria Jacosa Vieira. A cerimônia foi oficiada por Padre Quincas, que profetizou:

 

- "Virgulino - explicou o padre - vem de vírgula, quer dizer, pausa, parada." E arregalando os olhos: - "Quem sabe, o sertão inteiro e talvez o mundo vão parar de admiração por ele". 

 

O bando do mais temido dos cangaceiros, entrava cantando nas cidades e vilarejos. Com chapelões em forma de meia lua ricamente ornamentados com moedas de ouro e prata e roupas de couro, os bandidos chegavam a pé e pediam dinheiro, comida e apoio. Se a população negasse, a cantiga cedia lugar à marcha fúnebre: crianças eram seqüestradas, mulheres violentadas e homens, rasgados a punhal. Mas, caso os pedidos fossem atendidos, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, organizava um baile e distribuía esmolas.

Na manhã seguinte, antes que os soldados da volante viessem, o bando partia em fila indiana, todos pisando na mesma pegada. O último ia de costas, apagando o rastro com uma folhagem.

Foi assim por quase três décadas. Vagando por sete Estados, Virgulino semeava terror e morte no sertão. O fracasso das operações preparadas para capturá-lo e as recompensas oferecidas a quem o matasse só aumentaram a sua fama. Admirado pela sua valentia, o facínora acabou convertido em herói. Em 1931, o jornal New York Times chegou a apresentá-lo como um ROBIN HOOD DA CAATINGA, que roubava dos ricos para dar aos pobres. O próprio Lampião, era tão vaidoso, a ponto de só usar perfume francês e de distribuir cartões de visita com sua foto. Gostava também, de entrar nos povoados atirando moedas.

Fisicamente, Lampião era um homem de 1,70 m de altura, amulatado, corpulento e cego de um olho. Adorava adornar seus dedos com anéis e usava no pescoço lenços de cores berrantes, preso por valioso anel de doutor em Direito.

Era, porém, um bandido sanguinário. Durante suas andanças, arrancou olhos, cortou línguas, e decepou orelhas. Castrou um homem dizendo que ele precisava engordar. Moças que usassem cabelos ou vestidos curtos ele punia marcando o rosto a ferro quente. Em Bonito de Santa Fé, em 1923, deu início ao estupro coletivo da mulher do delegado. Vinte e cinco homens participaram da violação.

Apesar de suas atrocidades, era religioso e trazia sempre no bornal um rosário e uma imagem de Nossa Senhora da Conceição.

A sua sanha assassina foi despertada em 1915. Virgulino contava com 18 anos quando um coronel inimigo encomendou a morte de seus pais.

- "Vou matar até morrer" - prometeu ele, cheio de ódio e desejo de vingança.

Alistou-se em um bando de cangaceiros e foi logo promovido a líder. Envolveu-se em cerca de 200 combates com as "volantes", que resultaram em um milhar de mortes. As "volantes" eram constituídas de "cabras" ou "capangas" que eram familiarizados com o sertão. Elas acabaram tornando-se mais temidas pela população do que os próprios cangaceiros, pois além de se utilizarem da violência, possuíam o respaldo do governo.

O célebre apelido, recebeu depois de iluminar a noite com tiros de espingarda para que um companheiro achasse um cigarro.

Em Juazeiro 1926, Lampião recebe do Governo a patente de Capitão honorário das forças legais, além de doação de armamento e munição para combater a Coluna Prestes. Vaidosamente, ostentou esta falsa patente até a sua morte.

Existem duas teorias para a morte de Lampião. 

Em 1938 ele faz uma incursão ao agreste alagoano e esconde-se a seguir, em sua fortaleza, na Grota de Angico, no município de Porto da Folha, em Sergipe.

A polícia militar alagoana foi informada de seu esconderijo e organizou uma volante comandada pelo Tenente João Bezerra da Silva, juntamente com o Sargento Ancieto Rodrigues, portando metralhadoras portáteis, para caçá-lo.

As 4 horas da madrugada de 28 de julho de 1938, efetuaram a emboscada, que não durou mais de vinte minutos. Aproximadamente 40 cangaceiros conseguiram fugir. Lampião e 10 outros  pereceram.

Após o ataque, um soldado aparece segurando pelos cabelos a cabeça cortada de Virgulino. Bezerra quis saber o motivo da macabra exibição.

 

-"Se não levarmos a cabeça, o povo nunca vai acreditar que liquidamos Lampião", respondeu o soldado.

 

Onze cangaceiros tiveram suas cabeças cortadas. Maria Bonita foi degolada ainda viva.

 

Morre Lampião, mas eterniza-se seu mito. Sucumbiu com ele o cangaço.

 

Uma semana depois do massacre de Angicos, o Corisco, o "Diabo Louro", que havia se separado de Lampião, constituindo um bando à parte, desfechou ataques fulminantes sobre cidades à margem do

rio São Francisco como vingança pela morte de seu amigo. Enviou algumas cabeças cortadas ao prefeito do povoado de Piranhas, com um bilhete: "Se o negócio é de cabeças, vou mandar em quantidade".

 

 

EXIBIÇÃO MACABRA

 

 

 

As cabeças decepadas são: (de baixo para cima e da direita para esquerda)
1. Lampíão 2.Quinta Feira 3. Maria Bonita  4. Luiz Pedro 5. Mergulhão 6.  Manoel Miguel (Elétrico) 7. Caixa de Fósforo  8. Enedina  9. Cajarana 10 e 11. Moeda e Mangueira ? 

 

A morte de Lampião, sempre foi um assunto que gerou controvérsias. Sabe-se que seu esconderijo foi informado pelo coiteiro Pedro Cândido, que foi morto misteriosamente no ano de 1940. A tropa que foi responsável pela degola dos cangaceiros era composta de 48 homens. Mas o mistério está em como podem ter sido abatidos tão ferozes cangaceiros em tão pouco tempo e sem terem oferecido quase nenhuma resistência. Admite-se para tanto, a hipótese inclusive de envenenamento anterior. Como Pedro cândido era um homem de inteira confiança de Lampião, ele poderia ter levado algumas garrafas de bebidas envenenadas, sem terem suas tampas sido violadas. Algumas seringas de injeção fariam brilhantemente este trabalho. Ou, também talvez os cangaceiros tivessem se fartado de víveres envenenados. Tal argumento se baseia nos urubus mortos que foram encontrados ao lado dos corpos, após terem despedaçado as vísceras dos cangaceiros. Até hoje não se sabe ao certo a verdadeira história da morte de Lampião.

Virgulino escreveu com sangue a sua história de líder do cangaço no Nordeste, mas ainda assim, foi o bandido mais admirado do Brasil, considerado por vezes, um nobre salteador, gerou telenovelas, livros e filmes. Muitas destas obras dão glamour e misticismo a um herói-bandido.

Algumas delas:

Livro: "Cangaceiro"; minissérie "Lampião e Maria Bonita" de Nelson Xavier (1982); os filmes "O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro "(Glauber Rocha, 1969), O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953),  "O Cangaceiro Trapalhão" (1983),  "Baile Perfumado" (1997),  "Canta Maria" de José Wilker (2006), novela "Mandacaru" (1997).

A MARIA QUE FOI MUSA DO SERTÃO...

"Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café
Que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé...”


Maria Gomes de Oliveira, foi a primeira mulher a aparecer no cenário do cangaço. Nascida em 8 de março de 1911 (Data do dia Internacional da Mulher) em uma fazenda em Santa Brígida, na Bahia. Era filha de José Felipe de Oliveira e Maria Joaquina Déia. Tinha 11 irmãos.
Ela casou-se aos 15 anos com um sapateiro, com quem vivia às turras. Durante uma das separações de seu marido, o que era constante, Maria Bonita conheceu Lampião e apaixonou-se. Lampião, nesta época, tinha quase 33 anos e Maria pouco mais de 20. Esta paixão desenfreada os uniu até a morte.
Ela entrou para o bando ao final de 1930. Tiveram uma única filha, Expedita Ferreira, nascida em 1932, única sobrevivente das quatro gestações de Maria Bonita,que foi criada anonimamente por coiteiros.

Em alguns momentos, a intervenção de Maria Bonita impediu vários atos de crueldade de Lampião.

 

Maria Bonita era a Musa e a Rainha do Cangaço e ocupava-se entre outras coisas de costurar a indumentária dos cangaceiros. Depois dela, os outros cangaceiros também trouxeram suas companheiras para fazerem parte do bando. Dizem que elas participavam de todas as atividades, inclusive dos combates. Se destacaram: Dadá, esposa de Corisco, Lídia, mulher de Zé Baiano e outra Maria, mulher de Pancada.

Lampião e Maria Bonita, formaram o casal mais unido e temido do sertão.

ENTREVISTA DE LAMPIÃO EM JUAZEIRO (encontrada no site: http://www.infonet.com.br/lampiao/)

Foi entrevistado pelo médico de Crato, Dr. Octacílio Macêdo.

"A entrevista teve dois momentos. O primeiro foi travado o seguinte diálogo:

- Que idade tem?
- Vinte e sete anos.

- Há quanto tempo está nesta vida?
- Há nove anos, desde 1917, quando me ajuntei ao grupo do Senhor Pereira.

- Não pretende abandonar a profissão?
       A esta pergunta Lampião respondeu com outra:
- Se o senhor estiver em um negócio, e for se dando bem com ele, pensará porventura em abandoná-lo? Pois é exatamente o meu caso. Porque vou me dando bem com este "negócio", ainda não pensei em abandoná-lo.

- Em todo o caso, espera passar a vida toda neste "negócio"?
- Não sei... talvez... preciso porém "trabalhar" ainda uns três anos. Tenho alguns "amigos" que quero visitá-los, o que ainda não fiz, esperando uma oportunidade.

- E depois, que profissão adotará?
- Talvez a de negociante.

- Não se comove a extorquir dinheiro e a "variar" propriedades alheias?
- Oh! mas eu nunca fiz isto. Quando preciso de algum dinheiro, mando pedir "amigavelmente" a alguns camaradas.

Nesta altura chegou o 1° tenente do Batalhão Patriótico de Juazeiro, e chamou Lampião para um particular. De volta avisou-nos o facínora:

- Só continuo a fazer este "depoimento" com ordem do meu superior. (Sic!)

- E quem é seu superior?
- ! !
- Está direito...

Quando voltamos, algumas horas depois, à presença de Lampião, já este se encontrava instalado em casa do historiador brasileiro João Mendes de Oliveira.

Rompida, novamente, a custo, a enorme massa popular que estacionava defronte à casa, penetramos por um portão de ferro, onde veio Lampião ao nosso encontro, dizendo:

- Vamos para o sótão, onde conversaremos melhor.

Subimos uma escadaria de pedra até o sótão. Aí notamos, seguramente, uns quarenta homens de Lampião, uns descansando em redes, outros conversando em grupos; todos, porém, aptos à luta imediata: rifle, cartucheiras, punhais e balas...

- Desejamos um autógrafo seu, Lampião.
- Pois não.

Sentado próximo de uma mesa, o bandido pegou da pena e estacou, embaraçado.

- Que qui escrevo?
- Eu vou ditar.

E Lampião escreveu com mãos firmes, caligrafia regular.

"Juazeiro, 6 de março de 1926
Para... e o Coronel...
Lembrança de EU.
Virgulino Ferreira da Silva.
Vulgo Lampião".

Os outros facínoras observavam-nos, com um misto de simpatia e desconfiança. Ao lado, como um cão de fila, velava o homem de maior confiança de Lampião, Sabino Gomes, seu lugar-tenente, mal-encarado.

-É verdade, rapazes! Vocês vão ter os nomes publicados nos jornais em letras redondas...

A esta afirmativa, uns gozaram o efeito dela, porém parece que não gostaram da coisa.

- Agora, Lampião, pedimos para escrever os nomes dos rapazes de sua maior confiança.
- Pois não. E para não melindrar os demais companheiros, todos me merecem igual confiança, entretanto poderia citar o nome dos companheiros que estão há mais tempo comigo.

E escreveu.

1 - Luiz Pedro
2 - Jurity
3 - Xumbinho
4 - Nuvueiro
5 - Vicente
6 - Jurema

E o estado maior:
1 - Eu, Virgulino Ferreira
2 - Antônio Ferreira
3 - Sabino Gomes.

Passada a lista para nossas mãos fizemos a "chamada" dos cabecilhas fulano, cicrano, etc.

Todos iam explicando a sua origem e os seus feitos. Quando chegou a vez de "Xumbinho", apresentou-se-nos um rapazola, quase preto, sorridente, de 18 anos de idade.

- É verdade, "Xumbinho"! Você, rapaz tão moço, foi incluído por Lampião na lista dos seus melhores homens... Queremos que você nos ofereça uma lembrança...

"Xumbinho" gozou o elogio. Todo humilde, tirou da cartucheira uma bala e nos ofereceu como lembrança...

- No caso de insucesso com a polícia, quem o substituirá como chefe do bando?
- Meu irmão Antônio Ferreira ou Sabino Gomes...

- Os jornais disseram, ultimamente, que o tenente Optato, da polícia pernambucana, tinha entrado em luta com o grupo, correndo a notícia oficial da morte de Lampião.
- É ,o tenente é um "corredor", ele nunca fez a diligência de se encontrar "com nós"; nós é que lhe matemos alguns soldados mais afoitos.

- E o cel. João Nunes, comandante geral da polícia de Pernambuco, que também já esteve no seu encalço?
- Ah, este é um "velho frouxo", pior do que os outros...

Neste momento chegou ao sótão uma "romeira" velha, conduzindo um presente para Lampião. Era um pequeno "registro" e um crucifixo de latão ordinário. "Velinha", apresentando as imagens: "Stá aqui, seu coroné Lampião, que eu truve para vomecê".

- Este santo livra a gente de balas? Só me serve si for santo milagroso.

Depois, respeitosamente, beijou o crucifixo e guardou-o no bolso. Em seguida tirou da carteira um nota de 10$000 e gorgetou a romeira.

- Que importância já distribuiu com o povo do Juazeiro?
- Mais de um conto de réis.

Lampião começou por identificar-se:

- Chamo-me Virgulino Ferreira da Silva e pertenço à humilde família Ferreira do Riacho de São Domingos, município de Vila Bela. Meu pai, por ser constantemente perseguido pela família Nogueira e em especial por Zé Saturnino, nossos vizinhos, resolveu retirar-se para o município de Águas Brancas, no estado de Alagoas. Nem por isso cessou a perseguição.

- Em Águas Brancas, foi meu pai, José Ferreira, barbaramente assassinado pelos Nogueira e Saturnino, no ano de 1917.

- Não confiando na ação da justiça pública, por que os assassinos contavam com a escandalosa proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por minha conta própria, isto é, vingar a morte do meu progenitor. Não perdi tempo e resolutamente arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente das famílias inimigas para matar, e efetivamente consegui dizimá-las consideravelmente.

Sobre os grupos a que pertenceu:
- Já pertenci ao grupo de Sinhô Pereira, a quem acompanhei durante dois anos. Muito me afeiçoei a este meu chefe, porque é um leal e valente batalhador, tanto que se ele ainda voltasse ao cangaço iria ser seu soldado.

Sobre suas andanças e seus perseguidores:
- Tenho percorrido os sertões de Pernambuco, Paraíba e Alagoas, e uma pequena parte do Ceará. Com as polícias desses estados tenho entrado em vários combates. A de Pernambuco é disciplinada e valente, e muito cuidado me tem dado. A da Paraíba, porém, é uma polícia covarde e insolente. Atualmente existe um contingente da força pernambucana de Nazaré que está praticando as maiores violências, muito se parecendo com a força paraibana.

Referindo-se a seus coiteiros, Lampião esclareceu:

- Não tenho tido propriamente protetores. A família Pereira, de Pajeú, é que tem me protegido, mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com bons amigos, que me facilitam tudo e me consideram eficazmente quando me acho muito perseguido pelos governos.

- Se não tivesse de procurar meios para a manutenção dos meus companheiros, poderia ficar oculto indefinidamente, sem nunca ser descoberto pelas forças que me perseguem.
- De todos meus protetores, só um traiu-me miseravelmente. Foi o coronel José Pereira Lima, chefe político de Princesa. É um homem perverso, falso e desonesto, a quem durante anos servi, prestando os mais vantajosos favores de nossa profissão.

A respeito de como mantém o grupo:
- Consigo meios para manter meu grupo pedindo recursos aos ricos e tomando à força aos usuários que miseravelmente se negam de prestar-me auxílio.

Se estava rico?
- Tudo quanto tenho adquirido na minha vida de bandoleiro mal tem chegado para as vultuosas despesas do meu pessoal - aquisição de armas, convindo notar que muito tenho gasto, também, com a distribuição de esmolas aos necessitados.

A respeito do número de seus combates e de suas vítimas disse:
- Não posso dizer ao certo o número de combates em que já estive envolvido. Calculo, porém, que já tomei parte em mais de duzentos. Também não posso informar com segurança o número de vítimas que tombaram sob a pontaria adestrada e certeira de meu rifle. Entretanto, lembro-me perfeitamente que, além dos civis, já matei três oficiais de polícia, sendo um de Pernambuco e dois da Paraíba. Sargentos, cabos e soldados, é impossível guardar na memória o número dos que foram levados para o outro mundo.

Sobre as perseguições e fugas deixou claro:
- Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição que me movem os governos, brigando como louco e correndo rápido como vento quando vejo que não posso resistir ao ataque. Além disso, sou muito vigilante, e confio sempre desconfiando, de modo que dificilmente me pegarão de corpo aberto.

- Ainda é de notar que tenho bons amigos por toda parte, e estou sempre avisado do movimento das forças.

- Tenho também excelente serviço de espionagem, dispendioso mas utilíssimo.

Seu comportamento mereceu alguns comentários bastante francos:
- Tenho cometido violências e depredações vingando-me dos que me perseguem e em represália a inimigos. Costumo, porém, respeitar as famílias, por mais humildes que sejam, e quando sucede algum do meu grupo desrespeitar uma mulher, castigo severamente.

Perguntado se deseja deixar essa vida:
- Até agora não desejei, abandonar a vida das armas, com a qual já me acostumei e sinto-me bem. Mesmo que assim não sucedesse, não poderia deixá-la, porque os inimigos não se esquecem de mim, e por isso eu não posso e nem devo deixá-los tranquilos. Poderia retirar-me para um lugar longinguo, mas julgo que seria uma covardia, e não quero nunca passar por um covarde.

Sobre a classe da sua simpatia:
- Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio de preferência as classes conservadoras - agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por serem os homens do trabalho. Tenho veneração e respeito pelos padres, porque sou católico. Sou amigo dos telegrafistas, porque alguns já me tem salvo de grandes perigos. Acato os juizes, porque são homens da lei e não atiram em ninguém.

- Só uma classe eu detesto: é a dos soldados, que são meus constantes perseguidores. Reconheço que muitas vezes eles me perseguem porque são sujeitos, e é justamente por isso que ainda poupo alguns quando os encontro fora da luta.

Perguntado sobre o cangaceiro mais valente do nordeste:
- A meu ver o cangaceiro mais valente do nordeste foi Sinhô Pereira. Depois dele, Luiz Padre. Penso que Antonio Silvino foi um covarde, porque se entregou às forças do governo em consequência de um pequeno ferimento. Já recebi ferimentos gravíssimos e nem por isso me entreguei à prisão.

- Conheci muito José Inácio de Barros. Era um homem de planos, e o maior protetor dos cangaceiros do nordeste, em cujo convívio sentia-se feliz.

Questionado sobre ferimentos em combate, contou:
- Já recebi quatro ferimentos graves. Dentre estes, um na cabeça, do qual só por um milagre escapei. Os meus companheiros também, vários têm sido feridos. Possuímos, porém, no grupo, pessoas habilitadas para tratar dos ferimentos, de modo que sempre somos convenientemente tratados. Por isso, como o senhor vê, estou forte e perfeitamente sadio, sofrendo, raramente, ligeiros ataques reumáticos.

Sobre ter numeroso grupo:
- Desejava andar sempre acompanhado de numeroso grupo. Se não o organizo conforme o meu desejo é porque me faltam recursos materiais para a compra de armamentos e para a manutenção do grupo - roupa, alimentação, etc. Estes que me acompanham é de quarenta e nove homens, todos bem armados e municiados, e muito me custa sustentá-los como sustento. O meu grupo nunca foi muito reduzido, tem variado sempre de quinze a cinquenta homens.

Sobre padre Cícero Lampião foi bem específico:
- Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado do Ceará, porque aqui não tenho inimigos, nunca me fizeram mal, e além disso é o estado do padre Cícero. Como deve saber, tenho a maior veneração por esse santo sacerdote, porque é o protetor dos humildes e infelizes, e sobretudo porque há muitos anos protege minhas irmãs, que moram nesta cidade. Tem sido para elas um verdadeiro pai. Convém dizer que eu ainda não conhecia pessoalmente o padre Cícero, pois esta é a primeira vez que venho a Juazeiro.

Em relação ao combate aos revoltosos:
- Tive um combate com os revoltosos da coluna Prestes, entre São Miguel e Alto de Areias. Informado de que eles passavam por ali, e sendo eu um legalista, fui atacá-los, havendo forte tiroteio. Depois de grande luta, e estando com apenas dezoito companheiros, vi-me forçado a recuar, deixando diversos inimigos feridos.

A respeito de sua vinda ao Ceará:
- Vim agora ao Cariri porque desejo prestar meus serviços ao governo da nação. Tenho o intuito de incorporar-me às forças patrióticas do Juazeiro, e com elas oferecer combate aos rebeldes. Tenho observando que, geralmente, as forças legalistas não têm planos estratégicos, e daí os insucessos dos seus combates, que de nada tem valido. Creio que se aceitassem meus serviços e seguissem meus planos, muito poderíamos fazer.

Sobre o futuro Lampião mostrou-se incerto, apesar de ter planos:
- Estou me dando bem no cangaço, e não pretendo abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda nele. Preciso trabalhar ainda uns três anos. Tenho de visitar alguns amigos, o que não fiz por falta de oportunidade. Depois, talvez me torne um comerciante.

Aqui termina a entrevista concedida por Lampião em Juazeiro.

Na despedida Lampião nos acompanhou até a porta. Pediu nosso cartão de visita e acrescentou:

- Espero contar com os "votos" dos senhores em todo tempo!

- Que dúvida... respondemos.

Como sabemos, Lampião, o "Rei do Cangaço", não viveu o suficiente para ver todos seus planos concretizados. "


 
Texto pesquisado e desenvolvido por

Rosane Volpatto