A ERA DO CANGAÇO

No século XVII, ocorreu o deslocamento do centro
da economia para o sul. O sertão nordestino já castigado pelo flagelo das
secas prolongadas, vê agravar-se as desigualdades sociais. Neste panorama
visualiza-se a figura do coronel, detentor de todo o poder e lei da região que
considerava-se senhorio. A existência de constantes conflitos devido à posses
e limites geográficos entre as fazendas, além das rivalidades políticas,
fizeram com que estes senhores feudais, procurassem cercar-se do maior número
de jagunços (vassalos dos coronéis) e cabras, necessários para defender seus
interesses. Deste modo, se criaram verdadeiros exércitos particulares e
verdadeiras guerras foram travadas entre famílias. Este quadro, como vemos, foi
propício para o aparecimento do banditismos.
No final do Império e em seguida a grande seca
de 1877-1879, a miséria e a violência eram crescente, o que viabilizou, em
face da luta pela própria sobrevivência, o surgimento dos primeiros bandos
armados independentes do controle dos grandes fazendeiros. Nesta época,
destacavam-se os bandos de Inocêncio Vermelho e de João Calangro.

O cangaço, entretanto, só toma vulto na
República, com a figura de Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião.
LAMPIÃO, HERÓI OU BANDIDO? COM CERTEZA, UM
MITO.
"É lamp, é
lamp, é lamp
É Virgulino
Lampião
É o Rei do
Cangaço
Interventor lá
do sertão".
Virgulino nasceu no dia 04
de junho de 1898, no
Sítio Passagem das Pedras, na Serra Vermelha, atual Serra Talhada, no estado de
Pernambuco. Seus pais
eram José Ferreira e Maria Sulena da Purificação e ele era o terceiro filho do
casal.
Ele
foi batizado aos três meses de nascido, na capela
do povoado de São Francisco, sendo seus padrinhos
os avós maternos: Manuel Pedro Lopes e D. Maria
Jacosa Vieira. A cerimônia foi oficiada por Padre
Quincas, que profetizou:
- "Virgulino - explicou o padre -
vem de vírgula, quer dizer, pausa, parada." E
arregalando os olhos: - "Quem sabe, o sertão
inteiro e talvez o mundo vão parar de admiração
por ele".

O bando do mais temido dos cangaceiros, entrava
cantando nas cidades e vilarejos. Com chapelões em forma de meia lua ricamente
ornamentados com moedas de ouro e prata e roupas
de couro, os bandidos chegavam a pé e pediam dinheiro, comida e apoio. Se a
população negasse, a cantiga cedia lugar à marcha fúnebre: crianças eram
seqüestradas, mulheres violentadas e homens, rasgados a punhal. Mas, caso os
pedidos fossem atendidos, Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião, organizava um
baile e distribuía esmolas.
Na manhã seguinte, antes que os soldados da
volante viessem, o bando partia em fila indiana, todos pisando na mesma pegada.
O último ia de costas, apagando o rastro com uma folhagem.
Foi assim por quase três décadas. Vagando por
sete Estados, Virgulino semeava terror e morte no sertão. O fracasso das
operações preparadas para capturá-lo e as recompensas oferecidas a quem o
matasse só aumentaram a sua fama. Admirado pela sua valentia, o facínora
acabou convertido em herói. Em 1931, o jornal New York Times chegou a
apresentá-lo como um ROBIN HOOD DA CAATINGA, que roubava dos ricos para dar aos
pobres. O próprio Lampião, era tão vaidoso, a ponto de só usar perfume
francês e de distribuir cartões de visita com sua foto. Gostava também, de
entrar nos povoados atirando moedas.
Fisicamente, Lampião era um homem de 1,70 m de
altura, amulatado, corpulento e cego de um olho. Adorava adornar seus dedos com
anéis e usava no pescoço lenços de cores berrantes, preso por valioso anel de
doutor em Direito.
Era, porém, um bandido sanguinário. Durante
suas andanças, arrancou olhos, cortou línguas, e decepou orelhas. Castrou um
homem dizendo que ele precisava engordar. Moças que usassem cabelos ou vestidos
curtos ele punia marcando o rosto a ferro quente. Em Bonito de Santa Fé, em
1923, deu início ao estupro coletivo da mulher do delegado. Vinte e cinco
homens participaram da violação.
Apesar de suas
atrocidades, era religioso e trazia sempre no bornal um rosário e uma imagem de
Nossa Senhora da Conceição.
A sua sanha assassina foi despertada em 1915.
Virgulino contava com 18 anos quando um coronel inimigo encomendou a morte de
seus pais.
- "Vou matar até morrer" - prometeu
ele, cheio de ódio e desejo de vingança.

Alistou-se em um bando de cangaceiros e foi logo
promovido a líder. Envolveu-se em cerca de 200 combates com as
"volantes", que resultaram em um milhar de mortes. As
"volantes" eram constituídas de "cabras" ou
"capangas" que eram familiarizados com o sertão. Elas acabaram
tornando-se mais temidas pela população do que os próprios cangaceiros, pois
além de se utilizarem da violência, possuíam o respaldo do governo.
O célebre apelido, recebeu depois de iluminar a
noite com tiros de espingarda para que um companheiro achasse um cigarro.
Em Juazeiro 1926, Lampião recebe do Governo a
patente de Capitão honorário das forças legais, além de doação de
armamento e munição para combater a Coluna Prestes. Vaidosamente, ostentou
esta falsa patente até a sua morte.
Existem duas teorias para a morte de Lampião.
Em 1938 ele faz uma incursão ao agreste alagoano
e esconde-se a seguir, em sua fortaleza, na Grota de Angico, no município de
Porto da Folha, em Sergipe.
A polícia
militar alagoana foi informada de seu esconderijo e
organizou uma volante comandada pelo Tenente João Bezerra da Silva, juntamente
com o Sargento Ancieto Rodrigues, portando metralhadoras portáteis, para
caçá-lo.
As 4 horas da madrugada de 28 de julho de 1938,
efetuaram a emboscada, que não durou mais de vinte minutos. Aproximadamente 40
cangaceiros conseguiram fugir. Lampião e 10 outros pereceram.
Após
o ataque, um soldado aparece segurando pelos cabelos a cabeça cortada de
Virgulino. Bezerra quis saber o motivo da macabra exibição.
-"Se
não levarmos a cabeça, o povo nunca vai acreditar que liquidamos
Lampião", respondeu o soldado.
Onze
cangaceiros tiveram suas cabeças cortadas. Maria Bonita foi degolada ainda viva.
Morre
Lampião, mas eterniza-se seu mito. Sucumbiu com ele o cangaço.
Uma semana depois do massacre de Angicos,
o Corisco, o "Diabo Louro", que havia se separado de Lampião, constituindo um
bando à parte, desfechou ataques fulminantes sobre cidades à margem do
rio São Francisco como vingança pela morte
de seu amigo. Enviou algumas cabeças cortadas ao prefeito do povoado de
Piranhas, com um bilhete: "Se o negócio é de cabeças, vou mandar em quantidade".

EXIBIÇÃO
MACABRA

As
cabeças decepadas são: (de baixo para cima e da direita para esquerda)
1. Lampíão 2.Quinta Feira 3. Maria Bonita 4. Luiz Pedro 5. Mergulhão
6. Manoel Miguel (Elétrico) 7. Caixa de Fósforo 8. Enedina
9. Cajarana 10 e 11. Moeda e Mangueira ?
A
morte de Lampião, sempre foi um assunto que gerou controvérsias. Sabe-se que
seu esconderijo foi informado pelo coiteiro Pedro Cândido, que foi morto
misteriosamente no ano de 1940. A tropa que foi responsável pela degola dos
cangaceiros era composta de 48 homens. Mas o mistério está em como podem ter
sido abatidos tão ferozes cangaceiros em tão pouco tempo e sem terem oferecido
quase nenhuma resistência. Admite-se para tanto, a hipótese inclusive de
envenenamento anterior. Como Pedro cândido era um homem de inteira confiança
de Lampião, ele poderia ter levado algumas garrafas de bebidas envenenadas, sem
terem suas tampas sido violadas. Algumas seringas de injeção fariam
brilhantemente este trabalho. Ou, também talvez os cangaceiros tivessem se
fartado de víveres envenenados. Tal argumento se baseia nos urubus mortos que
foram encontrados ao lado dos corpos, após terem despedaçado as vísceras dos
cangaceiros. Até hoje não se sabe ao certo a verdadeira história da morte de
Lampião.
Virgulino escreveu com sangue a sua história de
líder do cangaço no Nordeste, mas ainda assim, foi o bandido mais admirado do
Brasil, considerado por vezes, um nobre salteador, gerou telenovelas, livros e filmes. Muitas
destas obras dão glamour e misticismo a um herói-bandido.
Algumas delas:
Livro:
"Cangaceiro"; minissérie "Lampião e Maria Bonita" de Nelson Xavier (1982); os
filmes "O Dragão da Maldade contra
o Santo Guerreiro "(Glauber Rocha, 1969), O Cangaceiro (Lima Barreto, 1953),
"O Cangaceiro Trapalhão" (1983), "Baile Perfumado" (1997), "Canta
Maria" de José Wilker (2006), novela "Mandacaru" (1997).

A MARIA QUE FOI MUSA DO SERTÃO...

"Acorda Maria Bonita, levanta vai fazer o café
Que o dia já vem raiando e a polícia já está de pé...”
Maria Gomes de Oliveira, foi a primeira mulher a
aparecer no cenário do cangaço. Nascida em 8 de março de 1911 (Data do dia
Internacional da Mulher) em uma fazenda em Santa Brígida, na Bahia. Era filha
de José Felipe de Oliveira e Maria Joaquina Déia. Tinha 11 irmãos.
Ela casou-se aos 15 anos com um sapateiro, com quem vivia às turras. Durante
uma das separações de seu marido, o que era constante, Maria Bonita conheceu
Lampião e apaixonou-se. Lampião, nesta época, tinha quase 33 anos e Maria
pouco mais de 20. Esta paixão desenfreada os uniu até a morte.
Ela entrou para o bando ao final de 1930. Tiveram uma única filha, Expedita
Ferreira, nascida em 1932, única sobrevivente das quatro gestações de Maria
Bonita,que foi criada anonimamente por coiteiros.
Em alguns momentos, a intervenção de Maria
Bonita impediu vários atos de crueldade de Lampião.
Maria Bonita era a Musa e a Rainha do Cangaço e
ocupava-se entre outras coisas de costurar a indumentária dos cangaceiros.
Depois dela, os outros cangaceiros também trouxeram suas companheiras para
fazerem parte do bando. Dizem que elas participavam de todas as atividades,
inclusive dos combates. Se destacaram: Dadá, esposa de Corisco, Lídia, mulher
de Zé Baiano e outra Maria, mulher de Pancada.
Lampião e Maria Bonita, formaram o casal mais unido e temido do sertão.

ENTREVISTA DE
LAMPIÃO EM JUAZEIRO (encontrada no site:
http://www.infonet.com.br/lampiao/)

Foi
entrevistado pelo médico de Crato, Dr. Octacílio Macêdo.
"A entrevista teve dois momentos. O primeiro foi
travado o seguinte diálogo:
- Que idade tem?
- Vinte e sete anos.
- Há quanto tempo está nesta vida?
- Há nove anos, desde 1917, quando me ajuntei ao
grupo do Senhor Pereira.
- Não pretende abandonar a profissão?
A esta pergunta Lampião
respondeu com outra:
- Se o senhor estiver em um negócio, e for se
dando bem com ele, pensará porventura em
abandoná-lo? Pois é exatamente o meu caso. Porque
vou me dando bem com este "negócio", ainda não
pensei em abandoná-lo.
- Em todo o caso, espera passar a vida
toda neste "negócio"?
- Não sei... talvez... preciso porém "trabalhar"
ainda uns três anos. Tenho alguns "amigos" que
quero visitá-los, o que ainda não fiz, esperando
uma oportunidade.
- E depois, que profissão adotará?
- Talvez a de negociante.
- Não se comove a extorquir dinheiro e a
"variar" propriedades alheias?
- Oh! mas eu nunca fiz isto. Quando preciso de
algum dinheiro, mando pedir "amigavelmente" a
alguns camaradas.
Nesta altura chegou o 1° tenente do Batalhão
Patriótico de Juazeiro, e chamou Lampião para um
particular. De volta avisou-nos o facínora:
- Só continuo a fazer este "depoimento" com ordem
do meu superior. (Sic!)
- E quem é seu superior?
- ! !
- Está direito...
Quando voltamos, algumas horas depois, à presença
de Lampião, já este se encontrava instalado em
casa do historiador brasileiro João Mendes de
Oliveira.
Rompida, novamente, a custo, a enorme massa
popular que estacionava defronte à casa,
penetramos por um portão de ferro, onde veio
Lampião ao nosso encontro, dizendo:
- Vamos para o sótão, onde conversaremos melhor.
Subimos uma escadaria de pedra até o sótão. Aí
notamos, seguramente, uns quarenta homens de
Lampião, uns descansando em redes, outros
conversando em grupos; todos, porém, aptos à luta
imediata: rifle, cartucheiras, punhais e balas...
- Desejamos um autógrafo seu, Lampião.
- Pois não.
Sentado próximo de uma mesa, o bandido pegou da
pena e estacou, embaraçado.
- Que qui escrevo?
- Eu vou ditar.
E Lampião escreveu com mãos firmes, caligrafia
regular.
"Juazeiro, 6 de março de 1926
Para... e o Coronel...
Lembrança de EU.
Virgulino Ferreira da Silva.
Vulgo Lampião".
Os outros facínoras observavam-nos, com um misto
de simpatia e desconfiança. Ao lado, como um cão
de fila, velava o homem de maior confiança de
Lampião, Sabino Gomes, seu lugar-tenente,
mal-encarado.
-É verdade, rapazes! Vocês vão ter os nomes
publicados nos jornais em letras redondas...
A esta afirmativa, uns gozaram o efeito dela,
porém parece que não gostaram da coisa.
- Agora, Lampião, pedimos para escrever os
nomes dos rapazes de sua maior confiança.
- Pois não. E para não melindrar os demais
companheiros, todos me merecem igual confiança,
entretanto poderia citar o nome dos companheiros
que estão há mais tempo comigo.
E escreveu.
1 - Luiz Pedro
2 - Jurity
3 - Xumbinho
4 - Nuvueiro
5 - Vicente
6 - Jurema
E o estado maior:
1 - Eu, Virgulino Ferreira
2 - Antônio Ferreira
3 - Sabino Gomes.
Passada a lista para nossas mãos fizemos a
"chamada" dos cabecilhas fulano, cicrano, etc.
Todos iam explicando a sua origem e os seus
feitos. Quando chegou a vez de "Xumbinho",
apresentou-se-nos um rapazola, quase preto,
sorridente, de 18 anos de idade.
- É verdade, "Xumbinho"! Você, rapaz tão moço, foi
incluído por Lampião na lista dos seus melhores
homens... Queremos que você nos ofereça uma
lembrança...
"Xumbinho" gozou o elogio. Todo humilde, tirou da
cartucheira uma bala e nos ofereceu como
lembrança...
- No caso de insucesso com a polícia, quem
o substituirá como chefe do bando?
- Meu irmão Antônio Ferreira ou Sabino Gomes...
- Os jornais disseram, ultimamente, que o
tenente Optato, da polícia pernambucana, tinha
entrado em luta com o grupo, correndo a notícia
oficial da morte de Lampião.
- É ,o tenente é um "corredor", ele nunca fez a
diligência de se encontrar "com nós"; nós é que
lhe matemos alguns soldados mais afoitos.
- E o cel. João Nunes, comandante geral da
polícia de Pernambuco, que também já esteve no seu
encalço?
- Ah, este é um "velho frouxo", pior do que os
outros...
Neste momento chegou ao sótão uma "romeira" velha,
conduzindo um presente para Lampião. Era um
pequeno "registro" e um crucifixo de latão
ordinário. "Velinha", apresentando as imagens: "Stá
aqui, seu coroné Lampião, que eu truve para vomecê".
- Este santo livra a gente de balas? Só me serve
si for santo milagroso.
Depois, respeitosamente, beijou o crucifixo e
guardou-o no bolso. Em seguida tirou da carteira
um nota de 10$000 e gorgetou a romeira.
- Que importância já distribuiu com o povo
do Juazeiro?
- Mais de um conto de réis.
Lampião começou por identificar-se:
- Chamo-me Virgulino Ferreira da Silva e pertenço
à humilde família Ferreira do Riacho de São
Domingos, município de Vila Bela. Meu pai, por ser
constantemente perseguido pela família Nogueira e
em especial por Zé Saturnino, nossos vizinhos,
resolveu retirar-se para o município de Águas
Brancas, no estado de Alagoas. Nem por isso cessou
a perseguição.
- Em Águas Brancas, foi meu pai, José Ferreira,
barbaramente assassinado pelos Nogueira e
Saturnino, no ano de 1917.
- Não confiando na ação da justiça pública, por
que os assassinos contavam com a escandalosa
proteção dos grandes, resolvi fazer justiça por
minha conta própria, isto é, vingar a morte do meu
progenitor. Não perdi tempo e resolutamente
arrumei-me e enfrentei a luta. Não escolhi gente
das famílias inimigas para matar, e efetivamente
consegui dizimá-las consideravelmente.
Sobre os grupos a que pertenceu:
- Já pertenci ao grupo de Sinhô Pereira, a quem
acompanhei durante dois anos. Muito me afeiçoei a
este meu chefe, porque é um leal e valente
batalhador, tanto que se ele ainda voltasse ao
cangaço iria ser seu soldado.
Sobre suas andanças e seus perseguidores:
- Tenho percorrido os sertões de Pernambuco,
Paraíba e Alagoas, e uma pequena parte do Ceará.
Com as polícias desses estados tenho entrado em
vários combates. A de Pernambuco é disciplinada e
valente, e muito cuidado me tem dado. A da
Paraíba, porém, é uma polícia covarde e insolente.
Atualmente existe um contingente da força
pernambucana de Nazaré que está praticando as
maiores violências, muito se parecendo com a força
paraibana.
Referindo-se a seus coiteiros, Lampião esclareceu:
- Não tenho tido propriamente protetores. A
família Pereira, de Pajeú, é que tem me protegido,
mais ou menos. Todavia, conto por toda parte com
bons amigos, que me facilitam tudo e me consideram
eficazmente quando me acho muito perseguido pelos
governos.
- Se não tivesse de procurar meios para a
manutenção dos meus companheiros, poderia ficar
oculto indefinidamente, sem nunca ser descoberto
pelas forças que me perseguem.
- De todos meus protetores, só um traiu-me
miseravelmente. Foi o coronel José Pereira Lima,
chefe político de Princesa. É um homem perverso,
falso e desonesto, a quem durante anos servi,
prestando os mais vantajosos favores de nossa
profissão.
A respeito de como mantém o grupo:
- Consigo meios para manter meu grupo pedindo
recursos aos ricos e tomando à força aos usuários
que miseravelmente se negam de prestar-me auxílio.
Se estava rico?
- Tudo quanto tenho adquirido na minha
vida de bandoleiro mal tem chegado para as
vultuosas despesas do meu pessoal - aquisição de
armas, convindo notar que muito tenho gasto,
também, com a distribuição de esmolas aos
necessitados.
A respeito do número de seus combates e de
suas vítimas disse:
- Não posso dizer ao certo o número de
combates em que já estive envolvido. Calculo,
porém, que já tomei parte em mais de duzentos.
Também não posso informar com segurança o número
de vítimas que tombaram sob a pontaria adestrada e
certeira de meu rifle. Entretanto, lembro-me
perfeitamente que, além dos civis, já matei três
oficiais de polícia, sendo um de Pernambuco e dois
da Paraíba. Sargentos, cabos e soldados, é
impossível guardar na memória o número dos que
foram levados para o outro mundo.
Sobre as perseguições e fugas deixou
claro:
- Tenho conseguido escapar à tremenda perseguição
que me movem os governos, brigando como louco e
correndo rápido como vento quando vejo que não
posso resistir ao ataque. Além disso, sou muito
vigilante, e confio sempre desconfiando, de modo
que dificilmente me pegarão de corpo aberto.
- Ainda é de notar que tenho bons amigos por toda
parte, e estou sempre avisado do movimento das
forças.
- Tenho também excelente serviço de espionagem,
dispendioso mas utilíssimo.
Seu comportamento mereceu alguns
comentários bastante francos:
- Tenho cometido violências e depredações
vingando-me dos que me perseguem e em represália a
inimigos. Costumo, porém, respeitar as famílias,
por mais humildes que sejam, e quando sucede algum
do meu grupo desrespeitar uma mulher, castigo
severamente.
Perguntado se deseja deixar essa vida:
- Até agora não desejei, abandonar a vida das
armas, com a qual já me acostumei e sinto-me bem.
Mesmo que assim não sucedesse, não poderia
deixá-la, porque os inimigos não se esquecem de
mim, e por isso eu não posso e nem devo deixá-los
tranquilos. Poderia retirar-me para um lugar
longinguo, mas julgo que seria uma covardia, e não
quero nunca passar por um covarde.
Sobre a classe da sua simpatia:
- Gosto geralmente de todas as classes. Aprecio de
preferência as classes conservadoras -
agricultores, fazendeiros, comerciantes, etc., por
serem os homens do trabalho. Tenho veneração e
respeito pelos padres, porque sou católico. Sou
amigo dos telegrafistas, porque alguns já me tem
salvo de grandes perigos. Acato os juizes, porque
são homens da lei e não atiram em ninguém.
- Só uma classe eu detesto: é a dos soldados, que
são meus constantes perseguidores. Reconheço que
muitas vezes eles me perseguem porque são
sujeitos, e é justamente por isso que ainda poupo
alguns quando os encontro fora da luta.
Perguntado sobre o cangaceiro mais valente
do nordeste:
- A meu ver o cangaceiro mais valente do nordeste
foi Sinhô Pereira. Depois dele, Luiz Padre. Penso
que Antonio Silvino foi um covarde, porque se
entregou às forças do governo em consequência de
um pequeno ferimento. Já recebi ferimentos
gravíssimos e nem por isso me entreguei à prisão.
- Conheci muito José Inácio de Barros. Era um
homem de planos, e o maior protetor dos
cangaceiros do nordeste, em cujo convívio
sentia-se feliz.
Questionado sobre ferimentos em combate,
contou:
- Já recebi quatro ferimentos graves. Dentre
estes, um na cabeça, do qual só por um milagre
escapei. Os meus companheiros também, vários têm
sido feridos. Possuímos, porém, no grupo, pessoas
habilitadas para tratar dos ferimentos, de modo
que sempre somos convenientemente tratados. Por
isso, como o senhor vê, estou forte e
perfeitamente sadio, sofrendo, raramente, ligeiros
ataques reumáticos.
Sobre ter numeroso grupo:
- Desejava andar sempre acompanhado de numeroso
grupo. Se não o organizo conforme o meu desejo é
porque me faltam recursos materiais para a compra
de armamentos e para a manutenção do grupo -
roupa, alimentação, etc. Estes que me acompanham é
de quarenta e nove homens, todos bem armados e
municiados, e muito me custa sustentá-los como
sustento. O meu grupo nunca foi muito reduzido,
tem variado sempre de quinze a cinquenta homens.
Sobre padre Cícero Lampião foi bem
específico:
- Sempre respeitei e continuo a respeitar o estado
do Ceará, porque aqui não tenho inimigos, nunca me
fizeram mal, e além disso é o estado do padre
Cícero. Como deve saber, tenho a maior veneração
por esse santo sacerdote, porque é o protetor dos
humildes e infelizes, e sobretudo porque há muitos
anos protege minhas irmãs, que moram nesta cidade.
Tem sido para elas um verdadeiro pai. Convém dizer
que eu ainda não conhecia pessoalmente o padre
Cícero, pois esta é a primeira vez que venho a
Juazeiro.
Em relação ao combate aos revoltosos:
- Tive um combate com os revoltosos da coluna
Prestes, entre São Miguel e Alto de Areias.
Informado de que eles passavam por ali, e sendo eu
um legalista, fui atacá-los, havendo forte
tiroteio. Depois de grande luta, e estando com
apenas dezoito companheiros, vi-me forçado a
recuar, deixando diversos inimigos feridos.
A respeito de sua vinda ao Ceará:
- Vim agora ao Cariri porque desejo prestar meus
serviços ao governo da nação. Tenho o intuito de
incorporar-me às forças patrióticas do Juazeiro, e
com elas oferecer combate aos rebeldes. Tenho
observando que, geralmente, as forças legalistas
não têm planos estratégicos, e daí os insucessos
dos seus combates, que de nada tem valido. Creio
que se aceitassem meus serviços e seguissem meus
planos, muito poderíamos fazer.
Sobre o futuro Lampião mostrou-se incerto,
apesar de ter planos:
- Estou me dando bem no cangaço, e não pretendo
abandoná-lo. Não sei se vou passar a vida toda
nele. Preciso trabalhar ainda uns três anos. Tenho
de visitar alguns amigos, o que não fiz por falta
de oportunidade. Depois, talvez me torne um
comerciante.
Aqui termina a entrevista concedida por Lampião em
Juazeiro.
Na despedida Lampião nos acompanhou até a porta.
Pediu nosso cartão de visita e acrescentou:
- Espero contar com os "votos" dos senhores em
todo tempo!
- Que dúvida... respondemos.
Como sabemos, Lampião, o "Rei do Cangaço", não
viveu o suficiente para ver todos seus planos
concretizados. "
Texto pesquisado e desenvolvido por
Rosane Volpatto


|